quinta-feira, novembro 27, 2008

Estado de preparação!

(EU sentado numa cadeira no centro de uma grande sala escura. Nesta sala há apenas essa cadeira. Enxerga-se muito pouco dos dois. O diabo conversa com ele rodeando-o o tempo todo, mas “EU” o responde sem olhar para ele).

EU: (Sem olhar para o diabo) Estou aqui à disposição de quem quiser me perguntar o que desejar...
DIABO: A disposição de olhar tudo o que até agora fechou os olhos para que não visse?
EU: As sombras, os vermelhos... Num retrocesso digo que tudo não passou de um estado de preparação.
DIABO: Num retrocesso... (pausa) Tenho três pergunta para fazer. A primeira é sobre ter dois sexos...
EU: Apenas um é o suficiente para me deixar embriagado.
DIABO: E ter dois?
EU: Se tivesse dois, poderia amar a mim mesmo. E se houvesse uma outra pessoa caberia a ela o papel de terceiro.
DIABO: Você tem dois sexos?
EU: Apenas um que faço questão de dividir em duas partes.
DIABO: Duas partes iguais?
EU: Não. Duas partes bem distintas. Uma que permanece no passado e a outra que se mostra cada vez mais presente. (pausa) É sobre deixar sair de dentro de si àquilo que se guarda há muito tempo. Um desejo da carne. Um amor incomum.
DIABO: Um amor incomum...
EU: Pelo menos até o momento em que é experimentado.
DIABO: Já experimentou?
EU: Estou experimentando.
(Pausa)
DIABO: Olha pra mim!
EU: (não olha) Pra quê?
DIABO: Para eu ter a sensação de que está dizendo a verdade.
EU: Não estou mentindo.
DIABO: Para as outras pessoas isso não é mais que uma mentira...
EU: Qual?
DIABO: A de que está experimentando. Não experimentou nada até agora. Só tentou... Falta muito para que possa dizer que é uma experiência. Não tem valor o que fez até hoje.
EU: Por quê?
DIABO: Por que não escorreu sangue.
EU: Mentira!!!
DIABO: Exatamente. Uma mentira. Não escorreu sangue. Ainda está em estado de preparação.

(Pausa. Clareia-se a sala um pouco. Tornando mais visível o vulto dos dois).

EU: Estou aqui à disposição de quem quiser me perguntar o que desejar.
DIABO: Eu tenho outra pergunta. É sobre não querer dizer.
EU: Uma vez, correndo risco, disse a quem não devia, onde eu estava. Disse por que queria dizer. Mesmo sabendo do risco que corria abri a boca e cuspi essa informação. Era pessoal e íntima.
DIABO: E o que ele fez? Espalhou para o restante onde estava escondido?
EU: Não. Guardou segredo. E até hoje ninguém sabe onde eu estou.
DIABO: E você sabe?
EU: Sabia. Até que veio a necessidade de dizer novamente o que queria esconder.
DIABO: O que é?
EU: Eu conto. (respiração) Queria dizer que tenho fogo em meu corpo.
DIABO: Está pegando fogo. De longe se vê.
EU: Meu corpo está quente, ardendo como uma ferroada de escorpião.
DIABO: E o veneno, onde foi parar? Ainda corre nas veias...
EU: Não. (Pausa) O veneno, eu cuspi fora na primeira vez que disse onde estava. Cuspi bem no peito dele, achando que pudesse ficar com o corpo quente como o meu. Mesmo sabendo do risco. Mas ficou guardado.
DIABO: E o que não quer dizer?
EU: Que tenho vontade de cuspir em seu peito novamente. E esperar até que o veneno entre direto no seu coração e o faça parar. (pausa. Escorre sangue pelo seu nariz) Eu sangrei...
Diabo: Ainda não. O sangue ruim ainda não saiu totalmente.
EU: E quando seu coração parar, ele vai deixar de guardar segredos.
DIABO: Você guarda segredos? (Eu faz que sim) Então não há muita diferença.

(Pausa. Clareia-se a sala mais um pouco, deixando-a normal).
EU: Num retrocesso digo que tudo não passou de um estado de preparação.
DIABO: Está preparado?
EU: Já estava sangrando, antes mesmo de perguntar.
DIABO: Quando vai levantar dessa cadeira e olhar para mim? Não dói... (silêncio) Tenho minha terceira pergunta.
EU: Qual é?
DIABO: Vejamos... Quando foi a última vez que não guardou segredos?
EU: (pensa) Quando conversei com aquele homem.
DIABO: Daquela vez não era segredo de verdade. Era um veneno...
EU: Segredos? (pausa) Eu não me lembro. (pausa) Guardo tantos que acho que acredito não ter deixado escapar nenhum.
DIABO: Nenhum dos seus...
EU: Nem os meus, nem os de ninguém.
DIABO: Então põe pra fora. (Longo silêncio) Não põe por que não pode ou porque não quer? O homem que guarda o seu falso segredo espera um novo cuspe.
EU: Não posso...
DIABO: Um cuspe sem veneno. Adocicado, bem adocicado. Você sabe que pode. É só deixar sair.
EU: (Sai mais sangue, desta vez de seus ouvidos) Já estou sangrando.
DIABO: Não o suficiente para ser uma experiência. Se quiser sangrar realmente e só abrir a boca e soltar... Solta seu maior segredo.
EU: (Pausa. Tensão. Diz vagarosamente; sai sangue de sua boca) Divido meu sexo... para ter a chance de responder a um cuspe... que não seja meu.
DIABO: E de quem é...?
EU: Seu.
(tempo)
DIABO: É um bom segredo...
EU: Estou aqui para que seu veneno corra em mim e faça meu coração parar.
DIABO: Então precisa olhar para mim.
EU: Estando parado, tudo vai sair da minha boca como ar. E o homem a quem cuspi saberá que estou aqui.
DIABO: Vai cuspir nele novamente?
EU: Dessa vez não. Dessa vez ela saberá que meu corpo pega fogo...
DIABO: E...
EU: E que quero que seja meu, até à hora em que meu coração voltar a bater. (sai mais sangue da sua boca)
DIABO: Agora sim viveu uma experiência. Então olha pra mim. (Silêncio. Longa pausa).
EU: Vou olhar por que não tenho escolha.
DIABO: Você já escolheu.

(Eu olha para o rosto do diabo. Assim que os olhares se encontram a sala clareia-se de tal maneira que cega a todos. É uma luz muito intensa, e que aos poucos vai diminuindo até chegar ao black-out total)
(renato ribeiro)

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