sexta-feira, dezembro 26, 2008

Entardecer.

Os ponteiros do relógio rodopiam sem parar
A noite se torna dia e o dia tarde.
Cada segundo a mais
transforma o instante noutro.
Um instante seguro,
firme e forte em qualquer tempo

[renato ribeiro]

terça-feira, dezembro 23, 2008

Grilos.

Numa esquina dois...
Levemente escura e quase silenciosa.
E nesta noite não se ouvem os grilos,
Todos emudecidos.
Pelo ar, as respirações sobressaltam em pura volúpia.
Respirações mais quentes que o normal - densamente leve.
Da luz que vem do poste, vê-se apenas o sereno fino, quase seco.
E os dois, com os olhos sutilmente cerrados.
A neblina e o sereno que os encobrem, completam este estado,
Firmando um momento completo de silêncio e apneia.
Teus olhos. Seus olhos. Bocas úmidas e braços entrelaçados.
Entre os dois apenas um estado, sem palavras. Dois...
Pela rua, longínquos passos ecoam serenamente,
Preenchendo por um instante, o que deveria permanecer vazio.
Passos, vozes fracas, vapores voluptuosos
E olhares curiosos desejando ver mais do que o permitido.
Melhor seria se estes dois ouvissem apenas seus grilos.
E por fim, tão silencioso como escuro,
Os teus e os seus, de olhos bem aberto,
umedecem mais a boca e entrelaçam ainda mais seus braços.

[renato ribeiro]

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Pensamento sobre este ano que ainda não terminou.

As fagulhas ardentes, que lentamente pousaram sobre minha pele negra transformado-a em fogo latente, suscitaram inspirações cada vez mais profundas. Nelas se perderam os sentidos, ora abstratos, ora indecifráveis, ora comuns. Em volta, a imensidão de olhares perdidos sobre as sombras inquietas que emergiram de corpos dilacerados, numa implosão temporal, comprimiu ainda mais o tempo. Tornando-o pequeno, imperceptível a olho nu. E por entre encontros e desencontros, pela compressão do tempo, perdeu-se pelo espaço o ardor que se escondia por detrás dos olhares cada vez mais perdidos. Agora estou assim, solto no espaço, com o tempo contado, e com o corpo esfriando cada vez mais.
.
.
[renato ribeiro]

domingo, dezembro 21, 2008

Sábados.

Sábado. Os dois numa conversa descontraída. Risos. Piadinhas...

1 - O que vai fazer no próximo sábado a noite?
2 - Sair.
1 - Vai para...?
2 - Sair por aí rumo a algum lugar que não sei bem.
1 - E...
2 - Vou até onde o dinheiro der.
1 - Prostituta!
(...)

2 - Quando cheguei em casa havia um recado na secretária eletrônica. Era deste mesmo homem que conheci há algums dias atrás por puro acaso. O meu número só passei porque ele me deu um cartão pessoal que joguei na bolsa sem nem sequer olhar; não achei que fosse ligar. Nunca ligam. Eu também não ligo para ser sincera. Peguei o cartão por formalidade, para não estragar a noite. O recado na secretária? Não dizia muita coisa, apenas: "Oi! Estava pensando em sair no proximo sábado. O que acha? Quando der me liga." Ouvi, apaguei e não liguei. E melhor manter assim do que estragar tudo. Mas o cartão ainda continua na bolsa.

1 - As coisas já estão estragadas. Elas começam estragadas. Se temos algum problema, é porque tentamos concertá-las. É uma mania que temos em manter as coisas em ordem, tudo ajeitado como supostamente deveria ser, funcionando como um relógio de baterias novas. Eu prefiro ter que dar corda todo o dia de manhã, já sabendo que não vai ser o suficiente para o dia todo, e que o relógio vai parar. Desta forma eu ligo. Sempre. Se é para estragar que estrague de uma vez, para que volte ao normal.

2 - No sábado fui para o mesmo lugar em que nos encontramos por acaso. Fiquei por lá. Esperando.

1 - Liguei varias vezes até ela atender. E atendeu. Sabia que cedo ou tarde ela não iria resistir. Elas esperam que liguemos no dia seguinte, mas nunca uma semana depois. Ligo no dia seguinte e uma semana depois.

Num outro sábado, numa conversa pouco descontraída, menos risos, sem piadinhas. Pausas grandes durante a conversa. Assuntos pela metade.

1 - ...
2 - ...

Toca o telefone.

1 - Alô...
2 - Chegando lá, me encostei num canto. Os olhos fixos...
1 - Não, esse número não é da Madalena.
2 - A boca intacta por toda a noite...
1 - É um homem quem fala.
2 - A pele seca.
1 - Não sou a Madalena.
2 - Tive prazer em espera você aparecer. Hora certa, momento exato...
1 - Foi engano.
2 - Mas não foi.
1 - (desligando) O que foi que disse mesmo?
2 - Que no sábado eu fiquei em casa.

(...)

quarta-feira, dezembro 17, 2008

Na estrada eu digo

Dois homens sentados em um banco que fica a beira de uma estrada de terra. Essa estrada e longa e parece não ter fim tanto para um lado quanto por outro. Faz muito calor, a expressão dos dois homens e de absoluto cansaço.

1 – Encontrei-me com um desconhecido e disse o que aconteceu com a gente.
2 – Por quê?
1 – É mais fácil dizer para quem não conhecemos. (como num suspiro) As coisas ficam mais leve.
2 – Contou por contar?
1 – Por necessidade.

(tempo)

2 – E agora como se sente?
1 – Ele ouviu e depois foi embora. Não mudou muita coisa. (para o outro) Da mesma forma.
2 – Não adiantou muita coisa.
1 – A gente sempre espera uma resposta, não é?

(tempo)

2 – Conta pra mim...
1 – O que eu contei para aquele desconhecido? (Pausa) Não posso.
2 – Por quê?
1 – Porque é sobre você. Disse a ele o que gostaria de dizer para você, mas que não tive coragem. Ainda...
2 – Eu não vou ficar esperando o tempo todo.
1 – Eu não quero que me espere.
2 – Eu sozinho não dou conta.
1 – Então me espere...

(tempo)

2 – Sobre o que aconteceu com a gente, que fique só entre a gente. Se mais alguém souber teremos que explicar e explicar e explicar...
1 – Pensei que não ligava.
2 – De uma maneira ou de outra a gente sempre liga.

(tempo)

1 – Eu vou ter que sair por uns tempos. Você me espera...
2 – Eu não posso esperar por muito tempo.
1 – Eu sei. É só o tempo de encontrar um outro desconhecido.
2 – Pra quê?
1 – Para ver se dessa vez recebo uma resposta.
2 – Esperarei um tempo, depois irei embora.
1 – ...
2 – Se não tiver sua resposta não terá a minha.
1 – E qual é a pergunta?
2 – Não tenho coragem de dizer, ainda... Na estrada eu digo.

(tempo)

1 – A gente vai pra onde depois daqui?
2 – (apontando um dos lados) Por esse lado a estrada leva pra uma cidade bem pequena.
1 – É longe.
2 – Se já tiver a sua resposta, não.

(tempo)

1 – Eu vou procurar um desconhecido...
2 – (pausa) Eu esperarei...
1 – (interrompendo) Não me espere por muito tempo, talvez não dê tempo de voltar.

(Saindo)

2 – (Num rompante) Se encontrar um desconhecido...
1 – (Voltando) O quê?
2 – Se encontrar um desconhecido diga a ele que eu ainda estarei te esperando, mesmo que não volte. E que o que aconteceu entre nós dois é para todo mundo ficar sabendo.
1 – Eu digo sim...

(Sai de cena. O homem 2 permanece sentado enquanto vê o outro caminhar pela longa estrada de terra)

[renato ribeiro]

domingo, dezembro 14, 2008

OBS.: Alguns comentários são impensados, outros cheio de boas intenções e ainda, outros feitos por puro zelo.

sábado, dezembro 13, 2008

Para além do comum


Era um final de semana, era noite, eram estrelas que se viam no céu... era uma noite para além do comum!
O tempo quente e dilatado. Na sala da casa pouco arrumada, dois homens. Ouvia-se atravessar o ambiente, algumas músicas de Edith Piaf. Sonoro! Um dos homens estava sentado em uma poltrona enquanto o outro estendia-se sobre as almofadas jogadas ao chão. Calor!
Ora ou outra olhares intensamente pulsantes eram trocados entre estes dois, duo de olhos negros como a noite; e nada era dito, absolutamente nada, mas qualquer intenção de se dizer algo – inútil! - era antecipadamente compreendida. Era a conversa mais silenciosa que se pode imaginar.
No momento cimo deste palavrear mudo, soou a canção certa. Edith!
Sem erguer um milímetro a mais do que o normal as suas sobrancelhas, eles, numa confidência íntima, firmaram um segredo. Após, um deles, o que estava estirado sobre as almofadas, levantou-se e caminhou rumo ao banheiro. Passos longos! Longos! Long...! Lo...! Ouvia-se agora o barulho da água do chuveiro abalroar como o chão. Água fria!
Era noite, eram estrelas que se viam no céu... era uma noite para além do comum!
Ouvia-se da sala a voz do homem que do banheiro acompanhava a música da Edith. Um novo cigarro tinha sido acesso e tragado várias vezes pelo outro homem, ainda recostado na poltrona, as cinzas já não mais cabiam no pequeno cinzeiro. Tarde intensamente quente! De súbito o homem levantou-se, desligou a vitrola e retirou o disco que permaneceu em trabalho por todo o dia. A voz da Edith parou, mas a do homem que se banhava sob a água fria, não. Por toda a casa ainda ecoava a melodia. Sonoro!
Quem estivesse a caminhar frente à casa por aquele exato momento, poderia supor que algo estava acontecendo. E estava! Muita coisa, naquela noite, entre aqueles dois homens, estava acontecendo.
Eram estrelas que se viam no céu... era uma noite para além do comum!
O chuveiro foi desligado!
Entrando pela sala, enrolado numa toalha, o homem que se banhava, reafirmou o combinado com o negrume de seus olhos. Olhos fixos de um, olhos fixados do outro.
Toalha!
Aproximaram-se os dois, tanto que puderam sentir a respiração do outro como sendo a própria. Inspiração! E melodiosamente, sem que tivesse sido posto por qualquer um deles, Edith, como num misterioso gesto de compreensão, voltou a cantar. Desta vez silenciosamente! A música que agora ecoava pelos ouvidos dos dois homens era somente para eles. Simples! Como numa noite para além do comum.
E era final de semana...
Era noite...
Eram estrelas que se viam no céu...
Era uma noite para além do comum!
[renato ribeiro]

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Rito de passagem


Aos olhos que tanto vê...

Um corpo estendido no chão e sobre o corpo, várias folhas secas que se movem com o soprar dos ventos. Ele dentro de um círculo de sal grosso, num solo sagrado, buscando complementar-se num ritual. A fundo ouvem-se tambores que tocam fortes. Um jovem rapaz que experimenta a sensação de estar fora de si. Senhoras cantam uma oração a algum deus, uma evocação a uma energia maior. Não é um rito comum, não é simplesmente um rito de iniciação, e sim a passagem de um estado morto para outro. As folhas, os cantos e as senhoras que agora giram suas longas saias brancas ao redor do moço ao som dos tambores. Num espasmo, o corpo inerte se move. Era um movimento não previsto nesse ritual codificado e preciso. Ele se moveu e as senhoras pararam de rodar. O corpo do rapaz talvez não tivesse preparado para avançar a esse estágio. A falta de um rito de preparação talvez fosse o problema. Esse rapaz chegou tão disposto a fazer a passagem que qualquer dúvida sobre sua preparação entender-se-ia como uma ofensa aquele desejo de atravessar-se nesse ritual.
Era um rapaz que procurava um nascimento. Acreditava, e eu também acredito, que o seu período de gestação já havia cessado e que a hora de gritar e romper com o cordão já estava para acontecer. Esse rapaz, que mal se sabia o nome naquela roda de mulheres e sons de tambores, sem saber, havia decidido nascer a pouco tempo antes de se encontrar ali. Sim, foi uma decisão tomada por impulso, mas uma decisão verdadeira. O rapaz era um bom rapaz e jovem, eu me permito tal redundância.
Duas noites anteriores poder-se-ia encontrar com esse mesmo rapaz a andar por alguns becos escuros da sua cidade, sempre na companhia de alguns homens mais velhos. E nessas sombras escondidas do restante do mundo e principalmente dos transeuntes curiosos, ele se perdia, ou se encontrava, envolto em braços mais fortes e grosseiros. E após se encontrar – ou se perder – por alguns minutos, com olhos atentos a quem poderia encontra naquele lugar, saiam os dois a passos largos e sorrisos cerrados. E numa divisão de rua, cada qual seguia o seu caminho. Pouco se importava ao rapaz se o veria novamente e acredito passar o mesmo na cabeça desse outro homem.
Esse rapaz encaminhava-se para o bar. Ele tinha o hábito de sentar-se num bar, um pouco afastado do centro da cidade, sozinho, e ficar por ali horas, bebendo sua cerveja e observando qual daqueles homens, seria homem para não ser isento há um instante apenas. Nada se percebia em seu corpo. Ele não dizia nada, a não ser seu olhar rápido e incisivo. Naquele bar nenhuma palavra valia a pena ser dita. As pessoas não queriam falar. Exceto o garçom que por uma falsa simpatia comentava sobre o noticiário do dia.
– O moço ficou sabendo do acidente que ocorreu hoje à tarde?
– ...
– Dizem que foi um dos maiores que ocorreu até hoje. No noticiário não se falou de outra coisa. No rádio também não. Houve duas mortes. Duas mortes estranhas para ser sincero. Não consegui compreender direito, mas no próximo noticiário devem fazer uma reportagem melhor. Mais explicada.
– Depois então você me conta - Respondeu o rapaz.
– É sempre assim, as notícias não chegam como deveriam. A gente está praticamente do lado do acidente e não consegue saber nada direito. Só informações trocadas. Noticias de boca a boca não informam. Aumenta, exagera.
– Você poderia ligar o rádio?
– Isso mesmo! No rádio pode ser que avise alguma coisa.
E com a intenção de cortar aquele monólogo que estava sendo obrigado a escutar, o rádio foi ligado. Mas a atenção do rapaz estava apenas em seu copo de cerveja e em alguns homens assentados por perto. Com o rádio ligado, as falas do garçom passavam a ser mais curtas e diretas, para que não perdesse qualquer informação dado pelo repórter.
Entrou então, pela porta do bar, um outro rapaz. Olhar baixo, corpo magro. Ele se assentou na bancada próximo à mesa onde se encontrava o nosso rapaz. E dessa vez não foi ele quem olhou, o outro olhou incisivamente para a mesa do nosso primeiro rapaz e se virou para pedir uma cerveja. Eram dois rapazes. Pegando sua cerveja na bancada, ele se levantou vagarosamente – pensou o rapaz sentado à mesa que ele iria embora e que se tivesse que conseguir alguma coisa deveria correr atrás, como sempre acontecia. Um olhar, uma caminhada, uma perseguição... – e a passos curtos ele se aproximou da mesa do nosso rapaz e sentou-se sem pedir. Frente a frente os dois rapazes, um olhava para o outro, e os dois com olhares fortes. Nenhuma palavra dita. No restante do bar alguns burburinhos sobre mais uma notícia dada pelo garçom. Os dois tomaram cada qual a sua cerveja, entre olhares e silêncios. E por fim esse rapaz, que se assentou sem permissão, levantou-se e caminhou em direção a porta. E lá ficou parado. Acreditou o rapaz sentado à mesa, que ele estivesse o esperando e por pensar assim, ele foi e se pôs ao lado dele.
– As coisas por aqui não estão muito boas... – disse o nosso rapaz a fim de ouvir a cor da voz do outro.
– Vem comigo. Respondeu o desconhecido sem dizer uma palavra a mais.
Caminharam a passos largos. A essa hora da noite a rua já estava vazia. Um ou dois cachorros corriam pela rua revirando lixo a procura de comida. Alguns sons noturnos e nada mais. Nem neblina havia àquela hora. Era uma madrugada limpa e fria.
Numa das curvas feitas pelos os dois, nosso rapaz deu de frente com a Dona Chica, uma mulher que costumava caminhar à noite a procura de pessoas que tivessem a necessidade de fazer alguma passagem. Como ela acreditava, e assim também acredito. O rapaz parou por uns instantes e olhou diretamente para a senhora que também o encarou. O rapaz sabia o que aquilo poderia significar. Dona Chica era um agouro de morte! Assim pensavam todos. Mas o acidente que ocorrera há horas atrás, chamava por ela. Era mais uma louca de uma cidade pequena que acredita demais em suas loucuras.
Passando por essa senhora, ele continuou seguindo o rapaz, que já estava bem à frente. Chegaram os dois em um beco. Nada diferente do que nosso rapaz já habituara a fazer. Frente a frente um do outro, o rapaz desconhecido e de pouquíssimas palavras, olhou mais uma vez para o nosso rapaz e lhe deu um beijo longo. Afoito com a situação, o nosso rapaz colocou sua mão por entre as pernas desse desconhecido a fim de fazer ali, o que havia feito horas antes num outro lugar. Mas não foi assim. Esse rapaz desconhecido, após terminar o beijo dado por si mesmo e retribuído pelo rapaz, olhou novamente para ele e disse de forma fria:
– Já tive o que queria. Agora vai embora.
Surpreso com a situação, nosso rapaz não teve opção a não ser sair dali e deixá-lo sozinho naquele beco. Ele caminhando, olhava para trás buscando algum sinal de que era pra voltar. E numa dessas olhadas ele viu esse desconhecido se masturbando de forma intensa e satisfatória. Nosso rapaz caminhava. E já não olhava mais pra trás. Foi para casa sem entender o que de fato aconteceu naquela noite.
No dia seguinte como se fosse um ritual pessoal, ele foi até o bar, mas não para lançar olhares perdidos por entre as paredes do espaço, mas para ter a chance de rever aquele outro rapaz que não lhe deu a oportunidade de fazer, nem dizer absolutamente nada. Apesar de acreditar que não havia nada a ser dito realmente.
Sentado à mesa, ouvindo discursos do garçom sobre o acidente da noite anterior comentado agora com mais propriedade e detalhes, ele bebia a sua cerveja e olhava de tempo em tempo para a porta. Numa esperança infantil de rever por um instante sequer aquele outro rapaz. O garçom falava sobre o acidente de carro, quando tentando cala-lo, ele pediu para que ligasse o rádio. E o garçom fez. A sua necessidade de saber cada vez mais detalhes era tamanha, que qualquer outra informação seria útil para estender mais uma futura conversa. Mas naquele instante, o rapaz queria apenas o silêncio e a expectativa. O rádio ligado, os burburinhos do bar, interjeições do garçom sobre a deficiência de informações e entre todos esses estados, se é que se pode chamar de estados, mas me permito chamar assim, mais um plantão. Do rádio ouvia-se sobre um assassinato. Um homem que havia sido esfaqueando na noite anterior. Informação que chamou a atenção do rapaz por alguns instantes. Mas era apenas uma manchete, mais nada, para a revolta do garçom.
Decidido não mais esperar pelo outro rapaz, que poderia nunca mais aparecer, novamente o nosso rapaz voltou a lançar olhares perdidos pelo bar. Não demorou muito e ele encontrou um outro olhar que discretamente também procurava por um. Os dois levantaram-se e caminharam até a porta.
– As coisas por aqui não estão boas. Disse o homem que era alto, truculento e que parecia ser bastante rude.
– Nada além do comum.
– Tem um outro lugar...
– Vamos. Respondeu o rapaz sem esperar que ele terminasse de dizer o que pretendia. Era como ele sempre pensava. Às vezes não é necessário falar.
Caminharam até um beco escuro e dessa vez, diferentemente da noite anterior, mas idêntica a todas as outras, os dois se perderam e se acharam naquele beco escuro entre gemidos e respirações. Movimentos fortes e grosseiros daquele homem em contraponto aos gestos de quem se entrega e cede a um alguém de maior força.
Após o gozo, ainda encostados um no outro, após uns segundos de silêncio e apnéia, o rapaz por impulso pede ao homem que o atravesse com um ferro frio. O homem surpreendentemente não hesita e retira da bainha da calça um canivete. E então ele sente entrando suavemente em sua barrida um pedaço fino, frio. Seu corpo estava tão quente que não houve dor, apenas a sensação provocada pela diferença de temperatura. Da boca do homem saiam frases que não condiziam com o prazer do minuto anterior. Era um outro homem. Mais forte, mais macho. Mas depois de um tempo com o ferro frio dentro da barrida, não se podia ouvir mais nada, a não ser um agudo som vindo de dentro da cabeça do rapaz e que só poderia ser ouvido por ele mesmo.
Abandonando o corpo do rapaz no chão, o homem se virou e saiu. Não hesita novamente, não olha para trás. O corpo quente do rapaz vai perdendo o calor até à hora em que seus olhos se fecham.
Horas depois, o corpo desse rapaz já não estava mais lá. O seu corpo agora estava estendido no chão, sob várias folhas secas que se moviam com o soprar do vento. Ele estava dentro de um círculo de sal grosso, num solo sagrado, era a busca pela realização de um ritual. Ao fundo ouviam-se tambores que tocavam fortes. Esse jovem rapaz que experimenta a sensação de estar fora de si. Senhoras cantavam uma oração a algum deus, uma evocação a uma energia maior. Não é um rito comum, não é simplesmente um rito de iniciação e sim a passagem de um estado morto para outro.
As folhas, os cantos, e as senhoras que agora giram suas longas saias brancas ao redor do moço ao som dos tambores. Num espasmo o corpo inerte se move. As senhoras pararam de rodar. As senhoras pensaram que este corpo repousado no chão não estava pronto para avançar mais um estágio. A falta de um rito de preparação talvez fosse o problema. Dona Chica, que encontrou o corpo no beco escuro, e que ao vê-lo percebeu que a disposição do rapaz a fazer a passagem era maior, não achou que fosse necessário fazer um rito de preparação.
Dona Chica, como dito anteriormente, era uma senhora misteriosa que andava pelas ruas à noite a procura de quem estivesse disposto a fazer a passagem. Ela encontrou o rapaz deitado no chão com a respiração por um fio e com os olhos brilhando a ponto de fazer reluzir qualquer coisa a sua volta. Era de fato um chamado a Dona Chica, um verdadeiro chamado. Dona Chico o pegou pelos braços e o levou até o local onde costumava fazer o seu ritual. E sem hesitar por um segundo sequer, iniciou o processo de passagem desse rapaz.
Um espasmo. Talvez fosse necessário uma preparação, pensou Dona Chica jogando um líquido de cheio sobre o corpo do rapaz com um galho de folhas bem verdes, a fim de fazê-lo acalmar-se. As outras senhoras pararam e puseram-se a olhar Dona Chica, que mesmo surpresa com o acontecido, ainda sim se matinha ciente do que deveria fazer. Ela entoando um canto clamoso e purificando o corpo do rapaz com sua água de cheiro, pensava na vida desse jovem rapaz, que tão cedo decidiu fazer a passagem. Dona Chica não sabia nada sobre o rapaz e acreditava que pouca gente saberia dizer algo.
Esse nosso rapaz por muitas vezes foi visto a caminhar sorrateiramente pelos becos da cidade. Soturno esse rapaz. Sempre sozinho, apesar de nunca estar. Ele era bastante astuto pra saber manter em segredo as suas estripulias noturnas. Esse rapaz que desejou de forma tão prazerosa ser atravessado por um ferro frio, na verdade já havia presenciado outras inúmeras vezes, outros momentos de passagem. A morte já não lhe fazia medo, nem lhe causava surpresas. Ele há muito tempo vinha alimentando o desejo de ter a morte bem próxima de si. Parentes, conhecidos, amigos... todos sem exceção de nenhum, haviam passado. Como? Isso nem eu sei. Apenas posso afirmar que ele presenciou cada passagem de perto. Cada instante. Não pensem mal dele. Ele não seria capaz de fazer nada. Nem tão pouco teve algo haver com a morte de cada pessoa. É que algumas pessoas têm maior vocação para acompanhar de perto às desincorporações ou simplesmente são agourentas. Se pensarmos na segunda opção, esse rapaz seria um agouro de morte, assim como Dona Chica. A morte estava tão próxima dele em todos os momentos, que ele acreditou que deveria trazê-la para dentro de si. Por isso o desejo latente em fazer a passagem.
Dona Chica completou seu canto e o corpo do rapaz se acalmara. Estava novamente quieto. Estendido sobre um círculo de sal grosso. A respiração dele, nesse momento, estava mais forte, mais presente. Não era a hora. O rapaz não completou. Havia estado por um fio, mas este foi suficientemente forte para trazê-lo de volta. Agora de olhos abertos, e não tão brilhantes como quando chegou, ele se levantou olhou a sua volta, e sem surpresa ou fazer qualquer pergunta saiu desse espaço sagrado. Dona Chica e as outras senhoras, compreendendo a precocidade do ritual, também não disseram nada. Apenas observaram esse rapaz retirar-se dali. Ele caminhou por entre as ruas iluminadas pelo nascer do sol em direção a sua casa.
Na noite seguinte, este mesmo rapaz que teve a morte a pouca distância de seu corpo, estava no mesmo bar como de costume. Mas desta vez ele não estava com olhares à procura de outros. E nem estava querendo que o garçom cessasse seu constante informativo. Desta vez este nosso rapaz estava próximo ao balcão, com um copo de cerveja nas mãos, pedindo a atenção de todos os outros homens que se encontravam no bar. Ele queria dizer algo e para isso precisava da atenção de todos. Há muito contragosto dos demais freqüentadores deste bar, que além de suportar os dizeres do garçom, agora teriam que aturar um discurso qualquer, o nosso rapaz iniciou os dizeres.
– Simplesmente pontual - disse o rapaz - Não tenho mais nada a fazer a não ser, ser pontual. Se é que conseguirei. De todos os senhores aqui presente, que pouco se importam com qualquer outro senhor, ou que mal conhece o outro, e que frequentemente cruzam olhares entre si, despretensiosos, mas sempre incisivos, posso afirmar com prazer, que me encontro aqui, não por desejar permanecer nesse lugar, que por muitas vezes me auxiliou e afirmou o desejo de ter em mim uma lânima na barriga, mas para ter o prazer de apontar todos os homens que assim como eu se esgueiram por becos escuros. Para fazer o quê? Eu não preciso dizer. Está aí. Os olhares perdidos que entre um gole ou outro, discretamente convidam rapazes, que como eu, vem para cá em busca de perder-se entre respirações ofegantes e olhares fulminantes. Desejo! Todos estão ardendo em desejos. Se for para ser pontual, que seja assim. Completem seu rito de passagem. Ardam em desejo! Todos! Tirando um ou outro covarde que ainda se esconde por debaixo das luzes. E é isso que tenho para dizer aos senhores corajosos.
Ninguém no bar sabia o porquê daquele discurso, ou por que ouviram de forma tão atenta, cada palavra que o rapaz pronunciou. Acredito que ele nunca falou tanto como neste momento e que talvez nunca fale mais de maneira tão intensa. Ele rompeu com o cordão, assim acredito. Então nosso rapaz saiu pela porta do bar, após ter bebido de uma só vez a cerveja que estava em seu copo deixando-o em silêncio, a não ser pelo chiado quase mudo do rádio do garçom.
[renato ribeiro]

Obs.: Gosto muito deste texto.


segunda-feira, dezembro 08, 2008

[encontro com Mrs. Dalloway]

2. Flores

“Eu mesmo vou comprar flores”. Primeira frase que permeou minha cabeça, logo após a incisão da luz do sol pela fresta da janela semi-cerrada; e que permaneceu por toda manhã. Gélida como estava a alvorada e eu sentado na poltrona da varanda, a observar os seletos transeuntes que se arriscavam em passeios matinais, enquanto conservava o calor do meu corpo envolto numa manta, pensava sensatamente em fazer valer este pensamento solto que de súbito me despertou. Talvez fosse realmente sensato organizar uma pequena reunião. Preparar-se para tornar-se anfitrião e lançar-se sob olhares críticos, prontos para desaprovar-me no mais ínfimo descuido. Um risco e acima de tudo uma correção ao insistente erro de não fazer-se notar. Homens da minha idade não podem se privar de pequenos contatos com outros senhores e também senhoras. Morando só, já a alguns anos, sem ter ao lado por tempo suficientemente considerável, alguém a quem pudesse chamar de companheira, para não findar o tempo afundado em poltronas de coura em varandas frias, poderia claramente pensar em pequenos encontros como sendo o proponente, fazendo valer a idade que possuo e a maturidade esperada por ela. “Eu mesmo vou encomendar as flores”, disse firmemente.
À tarde, sentado à mesa do restaurante do centro da cidade, logo após o almoço; o que se configura como uma desvantagem de [ser-se] se viver só, os almoços passam a ser solitários em sua maioria, salvo algumas ocasiões esporádicas em que, sejam por negócios ou por amizades antigas, alguém nos faz pequenas companhias; após o almoço dirigi-me até a floricultura, também próxima ao centro. Queria flores frescas e de boa qualidade, dignas de uma recepção bem sucedida. Flores de como quando, no século passado, um indivíduo era apresentado à sociedade. Um pensamento arcaico, mas que conserva em si as mais puras e precisas intenções de oferecer a esta altura dos não-acontecimentos uma festa. Talvez seja uma tentativa de retroceder o tempo. Experimentar novamente. Sucedido o horário de almoço, com toda a cidade num ritmo acelerado, homens andando a largos passos, com o único intuito de não perder a hora, e meu pensamento absolutamente lento, como uma pétala repousada sobre um lago calmo. Flores. Não havia necessidade de se ter presa, era apenas uma encomenda. Talvez orquídeas ou azaléias ou um arranjo misto pra o centro da mesa.
Ao adentrar pela porta da floricultura observando os inúmeros arranjos dispostos sobre bancadas para pura apreciação e encanto, num lancinante festejo de cores e aromas, penso como a leviandade pode ser amarga em seu fundamento mais simples.
“Possa auxiliar o senhor no que deseja?”, perguntou a funcionária com um sorriso tão ensaiado quanto a minha suposta reação a um encontro inesperado.
“Gostaria de encomendar flores para daqui a dois dias?”, respondi pontualmente.
“Flores de que qualidade?”
“As melhores para uma recepção simples. Penso em tulipas de diversas cores.” Não eram mais orquídeas, nem azaléias. “Tulipas” - e após refletir um pouco - “E uma arranjo de açucenas para a mesa”.
“Tulipas e um arranjo de mesa feito com açucenas para daqui a dois dias. O senhor deseja que seja entregue em sua casa?”
“Eu mesmo venho buscá-las”. Respondi com um prazer para além do comum, como se fosse a própria Mrs. Dalloway.
(renato ribeiro)

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Procura-se (fragmento)


Um homem e uma mulher sentados em uma sala à parte de um estúdio de televisão que é bem simples. Eles estão esperando o intervalo passar para novamente voltarem.

Mulher: Você não foi o mesmo como de costume. Faltou um pouco mais de energia.
Homem: É verdade... não convenci muito não é?
Mulher: Nem um pouco. Quer tentar de novo?
Homem: Agora?
Mulher: No próximo quadro. Pode ser que desta vez consiga ser mais convincente em sua performance. (Pausa) Não estou querendo pressionar. Se não quiser a gente pula esse.
Homem: ‘Me dá’ alguns minutos?
Mulher: Você é quem sabe.
Homem: Pra falar a verdade eu estou um pouco incomodado, não estou acostumado com tanta gente olhando assim tão de perto. Antes de começar, eu penso que tudo vai seguir como tem que seguir, respiro fundo, repasso na minha cabeça tudo o que tenho que fazer e vou. Aí eu começo a sentir os olhares. Por todos os lados tem alguém observando, vou ficando constrangido, mais constrangido e acaba que não flui com naturalidade.
Mulher: Não dá para fingir um pouquinho? Pensar em outras coisas na hora, fazer de conta que está totalmente ali e que aquele é o seu momento?
Homem: Não.
Mulher: Se eu trocar de roupa... Ajuda?
Homem: Você quer trocar de roupa?
Mulher: Pra mim tanto faz. Preto, vermelho, rosa; longo, comprido; salto alto, sem salto... é tudo um complemento. No momento o que importa mesmo é a quantidade de pessoas. Quanto mais, mais intenso. Eu nem penso, quando dou por mim eu já estou ali no meio tomada por uma coisa que nem sei o que é. É tão fácil.
Homem: Você gosta mesmo, não é?
Mulher: Gosto de verdade. Se têm uma coisa que não abro mão, é dessa sensação. O falecido detestava, achava um disparate. Dizia que isso não era pra gente normal. Besta! Reclamava até não poder mais, mas fez algumas vezes. Lembro que na primeira vez ele tava um pouco nervoso. Na verdade foi um ultimato, joguei a bomba e disse que se não topasse tava acabado. Não sou mulher pra homem ‘froxo’, não. Não sei se foi por medo ou pelo desejo, mas ele foi tão intenso, mas tão intenso, que saí com vergão por todo o corpo. Mas ele batia com uma força... e todos aplaudiam com fervor. Meu Deus! Um animal. É só lembrar que fico toda desconcertada. Depois dessa eu quis mais, normal todo mundo iria querer, mas não conseguiu ser a mesma coisa. Foi do máximo ao mínimo em questão de dias. Quando não conseguia mais, voltou com aquele discurso de que ele não gostava, de que não era desse tipo de homem, que tinha limite. No fundo no fundo todo mundo gosta. Quando não mostra, conta. Até mais do que deveria. É só pudor mesmo.
Homem: Terminou com ele por causa disso?
Mulher: Na verdade nós já estávamos desgastados. Essa foi uma tentativa de reerguer o que estava morto, morno. Eu até gostava dele. Era boa pessoa. Um homem que qualquer mulher gostaria de ter...
Homem: Como assim?
Mulher: De qualquer mulher que siga a linha tradicional. (Silêncio)
(renato ribeiro)

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Flores.

(diálogo interior)

1- Hoje, como todos os dias, as flores do jardim perderam algumas de suas pétalas com o soprar dos ventos. Cada pétala seguiu o seu caminho.

2- Ontem eu vi como aconteceu. Caules verdes, pétalas cor de fogo num imenso campo.

1- Flores de fogo.

2- Com raízes bem profundas pelo o que parece. Certa vez perdia horas do dia tentando descobrir o tamanho de suas raízes. Utilizando uma pequena pá, cavando pela borda para que não a machucasse, fui retirando a terra e observando as suas raízes.

1- São como todas as raízes.

2- Não são. Estas são mais intensas que as outras “raízes de flores”. São mais fortes.

1- Em flores tão delicadas?

2- As raízes que não se mostram, são raízes amargas.

1- Nem as conhecem. E nem sequer chegou a ver até onde elas chegavam.

2- Mesmo assim eu senti o amargo. Não pelo gosto, mas pelo cheiro. As pétalas perfumadas e a raiz de odor amargo.

1- É o que acontece quando se tenta cavar fundo. Às vezes só olhar o intensidade da cor de cada pétala já basta para sentir prazer.

2- É o que acontece quando se tenta tocar, mesmo sendo flores sem espinhos.

1- Ainda bem que suas pétalas voam com o vento. Com o tempo o encanto acaba. Com o vento vai-se o prazer.

2- E as raízes permaneceram bem profundas.

1- Então não cave mais. Espere até a próxima primavera. Novas pétalas, novos prazeres.

2- Acompanhado de novos ventos...

1- É assim em todos os tempos.

2- Em todos os tempos.

(renato ribeiro)

sábado, novembro 29, 2008

Morfina


O relógio desapertara três horas antes do horário costumeiro.
piiii-Piiii-PIIii-PIIII......
Um som agudo, crescente, que penetra pelos ouvidos chegando ao cérebro; só assim despertando o homem de sono insistente.
Com os olhos ainda semicerrados, ele estica o braço em câmera lenta e com um golpe de mão desliga o despertador. Cabeça pendente sobre o travesseiro, olhos pesados e corpo cansado. Fora mais uma noite mal dormida.
Após alguns minutos de pura reflexão pseudo-filosófica, sobre o porquê de estar ainda repousado sobre a cama, ou o porquê de ter que levantar-se, ele finalmente levanta-se. Arrasta os pés pelo quarto, sala, banheiro, cozinha...
Uma xícara dos formandos em enfermagem do ano1999, serve como suporte para o estimulante cafeínado matinal. Duas xícaras repletas até a borda e um Hollywood de filtro vermelho.
Era tão cedo que nem sequer o jornal havia chegado, quebrando a rotina de leitura das crônicas da última página do caderno de cultura.
Em pensamento apenas flashes da noite anterior
Plantão... Emergência... Curativos... Soro...
Pedidos de guia e respostas mal educadas.
Plantão... Emergência... Curativos... Soro...
Aplicações de injeções em crianças desesperadas acompanhadas de mães aflitas.
Plantão... Emergência... Curativos... Soro...
...
BUZINAS!
Ouve-se um carro buzinar frente à casa deste homem, trazendo-o de volta a sua cozinha mal iluminada. Ao chegar à janela, avista um carro parado com farol acesso e a rua molhado por uma suave neblina... Um vento gélido atravessa-lhe as orelhas.
Da janela do carro ouve-se:
– Dormiu bem?
E da janela da casa responde-se:
– Não.
– Não vai me convidar para entrar? – prosseguiu.
– Não.
– Conseguiu?
– Me dê três minutos. Pode ser?
Entra. Fecha a janela e senta-se no sofá. Respirações densas.
Nestes três minutos contados com precisão pelo homem grogue de sono, apenas uma frase martelava-lhe na cabeça:
– Hoje é o último dia! Hoje é o último dia! Hoje é o último dia! ...
Absorvido por ela, ele decide então abrir a janela e convidá-lo a entra. Em poucos segundo estavam estes dois homens frente a frente na pequena sala mal iluminada.
– O preço aumentou. – Diz - lhe com firmeza.
O homem do carro retruca quase que instantaneamente.
– Está sendo sacana.
– É de sacanagem que estou falando.
Surpreso com a resposta, o homem do carro, seco como nunca havia sido antes, mas consciente de sua necessidade, aproxima-se do outro e lhe beija. Ele recebera o beijo com um êxtase que não estava presente na ação e sim em sua cabeça ainda sonolenta.
Findando o beijo e percebendo que nada mais aconteceria ali, do bolso do roupão ele retira um pequeno frasco de vidro passando-o para o homem, que ao recebê-lo vira-se, bate a porta da casa e arranca com o carro.
Estático na sala a meia luz, ele repete para si mesmo como num mantra: “Hoje é o último dia! Hoje é o último dia! Hoje é o último dia!”.
Arrasta-se então até o quarto, senta-se a beira da cama. Abre a gaveta do criado mudo e de dentro desta retira um revolver. “Hoje é o último dia!” – permanece a frase. Gira com a mão o tambor do revolver, na esperança da única bala ali presente ser contemplada. Posiciona a arma próximo ao céu de sua boca e ao final de uma contagem de três segundos ele dispara.
Três, dois, um... -------------------------------------------------------

E por mais uma vez a sorte não fez juízo ao seu desejo.
Tornara então a deitar-se na cama, mas não sem antes colocar o relógio para desapertar no horário convencional.
– Amanhã será o último dia. – repetia o homem para si, até entrar em sono profundo.
(renato ribeiro)

sexta-feira, novembro 28, 2008

encontro com Mrs. Dalloway


1. Noturno

Numa noite fria, final de outono para princípio do inverno, onde um vento fino quase que cortante, surge como indício do fim da tarde, com a lua por nascer em sua fase crescente em estágio final, o céu sem estrelas indicando mais frio a caminho pela madrugada; eu percorro as ruas de pedras antigas e casarões mais antigos ainda, observando atentamente as pessoas que saem do trabalho, já num ritmo acelerado e com conversas frenéticas, como que contando o tempo para chegar em casa, mas sem deixar o assunto em questão, sejam frivolidades ou comentários mais ásperos sobre o dia cansativo; findar pela correria do pós-trabalho. Essas pessoas pelas quais passo, deixando apenas um sombra imperceptível, sem alterar sequer a intensidade da respiração destes, por um cuidado doentio de ser percebido, ou também, por inexperiência em fazer-se notar, não movem um músculo além dos já ativados, para olhar-me. Por erro meu e por erro deles; caminho para expurgar da mente lembranças de um dia amargo pela sua inatividade.
À tarde que se passou, mais uma deste ano acelerado que não nos cede tempo para reflexões mais demoradas; resume-se em cesta após o almoço, umas páginas de alguns contos da V. Woolf, que apesar de serem distantes desta época imediatista, abrange todos os meus pensamentos de maneira una e singular; e umas poucas observações sobre o que se pode fazer para mudar estas tediosas tardes, sem exatamente chegar a uma resposta ou indício de conclusões. Flores, luvas e festas dadas pela Mrs. Dalloway. “Talvez eu devesse sair para comprar flores”, assim pensei ao me lembrar deste romance ainda não lido, mas que surge como falso dejavú ao encontrar essa mesma personagem num outro conto, para criar uma nova expectativa de atividades, frívolas, mas ativas. Tentativa apenas. Não saio para comprar flores, nem luvas, apenas um maço de cigarros e uma ou outra coisinha a mais. Com o maço cheio, recém aberto, não haveria necessidade de desprender-me até o mercado para tal compra. Encerra à tarde desta forma, seca.
A passos pequenos, sem destino claro ou objetivo na caminhada, sigo. Invisível, inaudível; caminhando apenas. Meu desejo é ser abordado abruptamente por um desconhecido que se diz conhecer-me, sendo pego de surpresa. Assim sendo possível, expor a reação que tanto ensaiei por tempos e que de tanto repeti-la não se fez mais necessário ensaios. “Desculpe-me, mas não me lembro de você?” Diria com um sutil olhar de interrogação, e um pequeno arquear de sobrancelhas. Ele insistiria em dizer que me conhecerá numa festa em que estava elegantemente vestido, com comportamento impecável e digno de admiração. E eu responderia: “Deve ter-se enganado, não costumo ir a festas. A não ser...”.
“A festa da Mrs. Dalloway”. Responderia logo no primeiro instante em que hesitasse.
Mas isso não passa de um desejo apenas, simplesmente inconcebível. Tornando-se uma transposição de um desejo verídico para o âmbito simbólico e fantasioso. Pura imaginação.
Prosseguindo a caminhada, sentindo-me menos absorvido pelos pensamentos vespertinos, e observando mais atentamente este céu sem estrelas, vazio em seu negrume, a não ser pela lua resplandecente, que apesar de sua magnitude conserva-se só nesta noite de outono, penso: “Talvez eu devesse compra um maço de cigarros”.
(renato ribeiro)

quinta-feira, novembro 27, 2008

Estado de preparação!

(EU sentado numa cadeira no centro de uma grande sala escura. Nesta sala há apenas essa cadeira. Enxerga-se muito pouco dos dois. O diabo conversa com ele rodeando-o o tempo todo, mas “EU” o responde sem olhar para ele).

EU: (Sem olhar para o diabo) Estou aqui à disposição de quem quiser me perguntar o que desejar...
DIABO: A disposição de olhar tudo o que até agora fechou os olhos para que não visse?
EU: As sombras, os vermelhos... Num retrocesso digo que tudo não passou de um estado de preparação.
DIABO: Num retrocesso... (pausa) Tenho três pergunta para fazer. A primeira é sobre ter dois sexos...
EU: Apenas um é o suficiente para me deixar embriagado.
DIABO: E ter dois?
EU: Se tivesse dois, poderia amar a mim mesmo. E se houvesse uma outra pessoa caberia a ela o papel de terceiro.
DIABO: Você tem dois sexos?
EU: Apenas um que faço questão de dividir em duas partes.
DIABO: Duas partes iguais?
EU: Não. Duas partes bem distintas. Uma que permanece no passado e a outra que se mostra cada vez mais presente. (pausa) É sobre deixar sair de dentro de si àquilo que se guarda há muito tempo. Um desejo da carne. Um amor incomum.
DIABO: Um amor incomum...
EU: Pelo menos até o momento em que é experimentado.
DIABO: Já experimentou?
EU: Estou experimentando.
(Pausa)
DIABO: Olha pra mim!
EU: (não olha) Pra quê?
DIABO: Para eu ter a sensação de que está dizendo a verdade.
EU: Não estou mentindo.
DIABO: Para as outras pessoas isso não é mais que uma mentira...
EU: Qual?
DIABO: A de que está experimentando. Não experimentou nada até agora. Só tentou... Falta muito para que possa dizer que é uma experiência. Não tem valor o que fez até hoje.
EU: Por quê?
DIABO: Por que não escorreu sangue.
EU: Mentira!!!
DIABO: Exatamente. Uma mentira. Não escorreu sangue. Ainda está em estado de preparação.

(Pausa. Clareia-se a sala um pouco. Tornando mais visível o vulto dos dois).

EU: Estou aqui à disposição de quem quiser me perguntar o que desejar.
DIABO: Eu tenho outra pergunta. É sobre não querer dizer.
EU: Uma vez, correndo risco, disse a quem não devia, onde eu estava. Disse por que queria dizer. Mesmo sabendo do risco que corria abri a boca e cuspi essa informação. Era pessoal e íntima.
DIABO: E o que ele fez? Espalhou para o restante onde estava escondido?
EU: Não. Guardou segredo. E até hoje ninguém sabe onde eu estou.
DIABO: E você sabe?
EU: Sabia. Até que veio a necessidade de dizer novamente o que queria esconder.
DIABO: O que é?
EU: Eu conto. (respiração) Queria dizer que tenho fogo em meu corpo.
DIABO: Está pegando fogo. De longe se vê.
EU: Meu corpo está quente, ardendo como uma ferroada de escorpião.
DIABO: E o veneno, onde foi parar? Ainda corre nas veias...
EU: Não. (Pausa) O veneno, eu cuspi fora na primeira vez que disse onde estava. Cuspi bem no peito dele, achando que pudesse ficar com o corpo quente como o meu. Mesmo sabendo do risco. Mas ficou guardado.
DIABO: E o que não quer dizer?
EU: Que tenho vontade de cuspir em seu peito novamente. E esperar até que o veneno entre direto no seu coração e o faça parar. (pausa. Escorre sangue pelo seu nariz) Eu sangrei...
Diabo: Ainda não. O sangue ruim ainda não saiu totalmente.
EU: E quando seu coração parar, ele vai deixar de guardar segredos.
DIABO: Você guarda segredos? (Eu faz que sim) Então não há muita diferença.

(Pausa. Clareia-se a sala mais um pouco, deixando-a normal).
EU: Num retrocesso digo que tudo não passou de um estado de preparação.
DIABO: Está preparado?
EU: Já estava sangrando, antes mesmo de perguntar.
DIABO: Quando vai levantar dessa cadeira e olhar para mim? Não dói... (silêncio) Tenho minha terceira pergunta.
EU: Qual é?
DIABO: Vejamos... Quando foi a última vez que não guardou segredos?
EU: (pensa) Quando conversei com aquele homem.
DIABO: Daquela vez não era segredo de verdade. Era um veneno...
EU: Segredos? (pausa) Eu não me lembro. (pausa) Guardo tantos que acho que acredito não ter deixado escapar nenhum.
DIABO: Nenhum dos seus...
EU: Nem os meus, nem os de ninguém.
DIABO: Então põe pra fora. (Longo silêncio) Não põe por que não pode ou porque não quer? O homem que guarda o seu falso segredo espera um novo cuspe.
EU: Não posso...
DIABO: Um cuspe sem veneno. Adocicado, bem adocicado. Você sabe que pode. É só deixar sair.
EU: (Sai mais sangue, desta vez de seus ouvidos) Já estou sangrando.
DIABO: Não o suficiente para ser uma experiência. Se quiser sangrar realmente e só abrir a boca e soltar... Solta seu maior segredo.
EU: (Pausa. Tensão. Diz vagarosamente; sai sangue de sua boca) Divido meu sexo... para ter a chance de responder a um cuspe... que não seja meu.
DIABO: E de quem é...?
EU: Seu.
(tempo)
DIABO: É um bom segredo...
EU: Estou aqui para que seu veneno corra em mim e faça meu coração parar.
DIABO: Então precisa olhar para mim.
EU: Estando parado, tudo vai sair da minha boca como ar. E o homem a quem cuspi saberá que estou aqui.
DIABO: Vai cuspir nele novamente?
EU: Dessa vez não. Dessa vez ela saberá que meu corpo pega fogo...
DIABO: E...
EU: E que quero que seja meu, até à hora em que meu coração voltar a bater. (sai mais sangue da sua boca)
DIABO: Agora sim viveu uma experiência. Então olha pra mim. (Silêncio. Longa pausa).
EU: Vou olhar por que não tenho escolha.
DIABO: Você já escolheu.

(Eu olha para o rosto do diabo. Assim que os olhares se encontram a sala clareia-se de tal maneira que cega a todos. É uma luz muito intensa, e que aos poucos vai diminuindo até chegar ao black-out total)
(renato ribeiro)

recado.

1 – Onde você foi.
2 – Estava cansado de ficar aqui e fui até a mercearia comprar uma besteira.
1 – Veio um cara te procurar. Saiu agora mesmo. Por pouco não encontrava com ele.
2 – Sabe quem era?
1 – Não. Mas também não me é estranho. O engraçado é que ele não disse o que queria.
2 – Mas ele volta, não é?
1 – Acredito que sim. (pausa) Era um homem bastante interessante.
2 – Esperei por horas. ‘Me distrai’ um pouquinho e....
1 – Vai atrás. Ele deve estar por perto. Talvez no ponto de ônibus da esquina.
2 – Não tem precisão. Ele vai voltar.

dia seguinte...

2 – Algum recado pra mim?
1 – Não.
2 – E alguém me procurou?
1 – Também não.

semana seguinte...

2 – Alguém procurou por mim hoje.
1 – Não.
2 – Você sabe mesmo quem era?
1 – Não...

mês seguinte...

2 – Você...
1 – Não!
2 – Alguém...
1 – Não!

ano seguinte...
vários anos seguintes...
eternamente...

(renato ribeiro)

[Reorganizando discos por gênero...]

2 - ‘Me diz’ alguma coisa? Qualquer coisa?
1 - Eu tenho pouco tempo. Fui à cartomante e ela me disse que tenho apenas três dias.
2 - E...
1 - Acha que eu devo acreditar? Essas coisas são tão duvidosas.
2 - Pois bem, se fosse eu, nem sequer teria ido procurá-la. Não havia precisão de saber nada. Essas coisas, que são tão duvidosas, como disse, devem ser ignoradas.
1 - Mas eu fui. E ela me disse. E agora não tem como ignorar.
2 - Geralmente elas falam de coisas felizes, não de morte.
1 - É. Achei estranho. (pausa) A cartomante me pareceu sincera.
2 - Se não parecesse, não seria cartomante.
1 - E o que eu faço agora? Eu não posso sair feito um doido achando que tenho que aproveitar tudo, ela pode estar errada. E depois eu não vou ter como me justificar. Mas também não posso continuar assim desta forma, caso ela esteja certa eu estaria perdendo tempo.
2 - É mais fácil ela estar errada do que certa.
1 - Eu vou ignorar. Eu vou tentar ignorar.
2 - E o que vai fazer?
1 - Não sei bem. Trabalhar... porque tenho que trabalhar e talvez fazer algumas coisas. Pequenas coisas.
2 - Posso saber?
1 - Claro. Quero acordar as quatro e caminhar, até que o sol nasça. Recortar algumas imagens de revista e fazer um álbum de imagens. Reorganizar meus discos por gênero...
2 - Mais alguma coisa?
1 - Não sei. Tenho que pensar.
(silêncio)
2 - Você sabe que eu não acredito muito. Nem sei por que tá passando isso na minha cabeça agora. Quero que ela leia a minha sorte.
1 - Pra que?
2 - Só para eu ter um desculpa, para fazer algumas coisas. Grandes.
1 - Qual? Posso saber?
2 - Eu quero te acompanhar nas coisas que tem para fazer.
1 - Não precisa ir à cartomante pra isso.
2 - Eu sei, é mais como se fosse uma motivação extra.
1 - E se ela disser que vai ter vida longa?
2 - Não importo, eu vou ignorar o que ela falar mesmo.
(silêncio)
1 - ‘Me diz’ alguma coisa? Qualquer coisa?
2 - Tenho três dias para fazer você se apaixonar por mim.

(renato ribeiro)

- Feminino no masculino –


Com a benção dos céus peço proteção aos meus orixás, pois um novo dia está preste a arrebentar com a noite. Com o corpo quente e com a respiração ofegante, busco o cumprimento do destino que me guia. Num pedaço de papel grudado na boca de um sapo está escrito as linhas a serem seguidas. O vento sopra marcando o início de um presságio já previsto. Enxergo deitado no chão à metade de mim, que lentamente se pos ali. Olha meu duplo e uma forte dor contrai minha barriga. É um trabalho de parto que se inicia. A respiração intensifica, o sangue escorre, com as mãos retraio o nascimento de mais um desgraçado. Respiração forte, pesada, revelando o feminino no masculino. Um corte pungente rasga meu umbigo e desse orifício em carne viva e latejante saem compridas linhas ensangüentadas. No chão ao lado do meu duplo as linhas de carne que carregava dentro de mim, tem a ‘cabeça’ posta em seus (meus) braços. Ela parece dormir um suave sono. Percebo que ainda se mexe em pequenos movimentos como se quisesse acordar. Como se brotasse de dentro de si ar, o suficiente para lhe dar vida. O masculino e o feminino. Com a respiração descompassada e o corpo tenso por olhar aquele desgraçado resistindo ao único destino que lhe coube, impulsos de raiva saltam em reflexos repetidos em direção a este, espedaçando-o e espalhando pedaços de carne por todo o espaço. Sua pré-respiração cessa. Destino cumprido. O clarão do dia irrompe à noite. Um novo dia se pós em vigor. Viro e caminho em passos lentos e pesados. Quero voltar para o conforto da minha casa. Conto cada passo pesado. Mas num movimento súbito paro e retorno. Caminho agora em direção ao meu duplo. Estamos frente a frente. Da bainha da calça tiro um pedaço de ferro frio que ponho em direção ao seu (meu) rosto. E finalizo meu destino transpassando a mim mesmo com uma explosão. Nem sapos, nem orixás. Apenas com a respiração e o corpo quente sigo meu caminho rumo ao conforto da minha casa.

(renato ribeiro)

Idiossincrásico.

Corpo quente, calorífero.
Penumbra na sala desértica. Ignoto
Olhos entreabertos, pupilas dilatadas.
Respiração forte, vapor.
Sem nome, sem sexo.
Hermafrodita...
Corpo repousado no chão
De braços e pernas abertos
Sucção, esputação, suor...
Coito, sodomia.
Interrupção.
Repouso, “dês-canso”.

(renato ribeiro)
Estou me propondo a começar tudo novamente.
Com a intenção de completar (ou iniciar) uma ritual de purificação.
Sem progressões paulatinas, e sim com medidas bem determinadas.
Mudança de pensamentos, mudança de expectativas...
Uma nova forma idiossincrasíca.
Conservo o que vale a pena ser preservado, por julgar que de alguma forma
ela foi mais valiosa em seus momentos, não que as outras não tenham seu valor,
mas por pura comparação, como em quase todas as coisas, restam então estas postadas novamente aqui.