sábado, novembro 29, 2008

Morfina


O relógio desapertara três horas antes do horário costumeiro.
piiii-Piiii-PIIii-PIIII......
Um som agudo, crescente, que penetra pelos ouvidos chegando ao cérebro; só assim despertando o homem de sono insistente.
Com os olhos ainda semicerrados, ele estica o braço em câmera lenta e com um golpe de mão desliga o despertador. Cabeça pendente sobre o travesseiro, olhos pesados e corpo cansado. Fora mais uma noite mal dormida.
Após alguns minutos de pura reflexão pseudo-filosófica, sobre o porquê de estar ainda repousado sobre a cama, ou o porquê de ter que levantar-se, ele finalmente levanta-se. Arrasta os pés pelo quarto, sala, banheiro, cozinha...
Uma xícara dos formandos em enfermagem do ano1999, serve como suporte para o estimulante cafeínado matinal. Duas xícaras repletas até a borda e um Hollywood de filtro vermelho.
Era tão cedo que nem sequer o jornal havia chegado, quebrando a rotina de leitura das crônicas da última página do caderno de cultura.
Em pensamento apenas flashes da noite anterior
Plantão... Emergência... Curativos... Soro...
Pedidos de guia e respostas mal educadas.
Plantão... Emergência... Curativos... Soro...
Aplicações de injeções em crianças desesperadas acompanhadas de mães aflitas.
Plantão... Emergência... Curativos... Soro...
...
BUZINAS!
Ouve-se um carro buzinar frente à casa deste homem, trazendo-o de volta a sua cozinha mal iluminada. Ao chegar à janela, avista um carro parado com farol acesso e a rua molhado por uma suave neblina... Um vento gélido atravessa-lhe as orelhas.
Da janela do carro ouve-se:
– Dormiu bem?
E da janela da casa responde-se:
– Não.
– Não vai me convidar para entrar? – prosseguiu.
– Não.
– Conseguiu?
– Me dê três minutos. Pode ser?
Entra. Fecha a janela e senta-se no sofá. Respirações densas.
Nestes três minutos contados com precisão pelo homem grogue de sono, apenas uma frase martelava-lhe na cabeça:
– Hoje é o último dia! Hoje é o último dia! Hoje é o último dia! ...
Absorvido por ela, ele decide então abrir a janela e convidá-lo a entra. Em poucos segundo estavam estes dois homens frente a frente na pequena sala mal iluminada.
– O preço aumentou. – Diz - lhe com firmeza.
O homem do carro retruca quase que instantaneamente.
– Está sendo sacana.
– É de sacanagem que estou falando.
Surpreso com a resposta, o homem do carro, seco como nunca havia sido antes, mas consciente de sua necessidade, aproxima-se do outro e lhe beija. Ele recebera o beijo com um êxtase que não estava presente na ação e sim em sua cabeça ainda sonolenta.
Findando o beijo e percebendo que nada mais aconteceria ali, do bolso do roupão ele retira um pequeno frasco de vidro passando-o para o homem, que ao recebê-lo vira-se, bate a porta da casa e arranca com o carro.
Estático na sala a meia luz, ele repete para si mesmo como num mantra: “Hoje é o último dia! Hoje é o último dia! Hoje é o último dia!”.
Arrasta-se então até o quarto, senta-se a beira da cama. Abre a gaveta do criado mudo e de dentro desta retira um revolver. “Hoje é o último dia!” – permanece a frase. Gira com a mão o tambor do revolver, na esperança da única bala ali presente ser contemplada. Posiciona a arma próximo ao céu de sua boca e ao final de uma contagem de três segundos ele dispara.
Três, dois, um... -------------------------------------------------------

E por mais uma vez a sorte não fez juízo ao seu desejo.
Tornara então a deitar-se na cama, mas não sem antes colocar o relógio para desapertar no horário convencional.
– Amanhã será o último dia. – repetia o homem para si, até entrar em sono profundo.
(renato ribeiro)

Um comentário:

Carlos Renatto disse...

Até que enfim tirei um tempo para essas idiossincrasias. Ainda não li todas as postagens, mas todas que li gostei e muito. Lendo o que escreve, tenho a sensação que é fácil escrever, quando sabemos que não é. Talvez seja isso o que nos torna escritores, ou seja apenas mais uma idiossincrasia, sei lá. É bom lê-lo e é bom saber que escreve bem.