Os ponteiros do relógio rodopiam sem parar
A noite se torna dia e o dia tarde.
Cada segundo a mais
transforma o instante noutro.
Um instante seguro,
firme e forte em qualquer tempo
[renato ribeiro]
sexta-feira, dezembro 26, 2008
terça-feira, dezembro 23, 2008
Grilos.
Numa esquina dois...
Levemente escura e quase silenciosa.
E nesta noite não se ouvem os grilos,
Todos emudecidos.
Pelo ar, as respirações sobressaltam em pura volúpia.
Respirações mais quentes que o normal - densamente leve.
Da luz que vem do poste, vê-se apenas o sereno fino, quase seco.
E os dois, com os olhos sutilmente cerrados.
A neblina e o sereno que os encobrem, completam este estado,
Firmando um momento completo de silêncio e apneia.
Teus olhos. Seus olhos. Bocas úmidas e braços entrelaçados.
Entre os dois apenas um estado, sem palavras. Dois...
Pela rua, longínquos passos ecoam serenamente,
Preenchendo por um instante, o que deveria permanecer vazio.
Passos, vozes fracas, vapores voluptuosos
E olhares curiosos desejando ver mais do que o permitido.
Melhor seria se estes dois ouvissem apenas seus grilos.
E por fim, tão silencioso como escuro,
Os teus e os seus, de olhos bem aberto,
umedecem mais a boca e entrelaçam ainda mais seus braços.
Levemente escura e quase silenciosa.
E nesta noite não se ouvem os grilos,
Todos emudecidos.
Pelo ar, as respirações sobressaltam em pura volúpia.
Respirações mais quentes que o normal - densamente leve.
Da luz que vem do poste, vê-se apenas o sereno fino, quase seco.
E os dois, com os olhos sutilmente cerrados.
A neblina e o sereno que os encobrem, completam este estado,
Firmando um momento completo de silêncio e apneia.
Teus olhos. Seus olhos. Bocas úmidas e braços entrelaçados.
Entre os dois apenas um estado, sem palavras. Dois...
Pela rua, longínquos passos ecoam serenamente,
Preenchendo por um instante, o que deveria permanecer vazio.
Passos, vozes fracas, vapores voluptuosos
E olhares curiosos desejando ver mais do que o permitido.
Melhor seria se estes dois ouvissem apenas seus grilos.
E por fim, tão silencioso como escuro,
Os teus e os seus, de olhos bem aberto,
umedecem mais a boca e entrelaçam ainda mais seus braços.
[renato ribeiro]
segunda-feira, dezembro 22, 2008
Pensamento sobre este ano que ainda não terminou.
As fagulhas ardentes, que lentamente pousaram sobre minha pele negra transformado-a em fogo latente, suscitaram inspirações cada vez mais profundas. Nelas se perderam os sentidos, ora abstratos, ora indecifráveis, ora comuns. Em volta, a imensidão de olhares perdidos sobre as sombras inquietas que emergiram de corpos dilacerados, numa implosão temporal, comprimiu ainda mais o tempo. Tornando-o pequeno, imperceptível a olho nu. E por entre encontros e desencontros, pela compressão do tempo, perdeu-se pelo espaço o ardor que se escondia por detrás dos olhares cada vez mais perdidos. Agora estou assim, solto no espaço, com o tempo contado, e com o corpo esfriando cada vez mais.
.
.
[renato ribeiro]
domingo, dezembro 21, 2008
Sábados.
Sábado. Os dois numa conversa descontraída. Risos. Piadinhas...
1 - O que vai fazer no próximo sábado a noite?
2 - Sair.
1 - Vai para...?
2 - Sair por aí rumo a algum lugar que não sei bem.
1 - E...
2 - Vou até onde o dinheiro der.
1 - Prostituta!
(...)
2 - Quando cheguei em casa havia um recado na secretária eletrônica. Era deste mesmo homem que conheci há algums dias atrás por puro acaso. O meu número só passei porque ele me deu um cartão pessoal que joguei na bolsa sem nem sequer olhar; não achei que fosse ligar. Nunca ligam. Eu também não ligo para ser sincera. Peguei o cartão por formalidade, para não estragar a noite. O recado na secretária? Não dizia muita coisa, apenas: "Oi! Estava pensando em sair no proximo sábado. O que acha? Quando der me liga." Ouvi, apaguei e não liguei. E melhor manter assim do que estragar tudo. Mas o cartão ainda continua na bolsa.
1 - As coisas já estão estragadas. Elas começam estragadas. Se temos algum problema, é porque tentamos concertá-las. É uma mania que temos em manter as coisas em ordem, tudo ajeitado como supostamente deveria ser, funcionando como um relógio de baterias novas. Eu prefiro ter que dar corda todo o dia de manhã, já sabendo que não vai ser o suficiente para o dia todo, e que o relógio vai parar. Desta forma eu ligo. Sempre. Se é para estragar que estrague de uma vez, para que volte ao normal.
2 - No sábado fui para o mesmo lugar em que nos encontramos por acaso. Fiquei por lá. Esperando.
1 - Liguei varias vezes até ela atender. E atendeu. Sabia que cedo ou tarde ela não iria resistir. Elas esperam que liguemos no dia seguinte, mas nunca uma semana depois. Ligo no dia seguinte e uma semana depois.
Num outro sábado, numa conversa pouco descontraída, menos risos, sem piadinhas. Pausas grandes durante a conversa. Assuntos pela metade.
1 - ...
2 - ...
Toca o telefone.
1 - Alô...
2 - Chegando lá, me encostei num canto. Os olhos fixos...
1 - Não, esse número não é da Madalena.
2 - A boca intacta por toda a noite...
1 - É um homem quem fala.
2 - A pele seca.
1 - Não sou a Madalena.
2 - Tive prazer em espera você aparecer. Hora certa, momento exato...
1 - Foi engano.
2 - Mas não foi.
1 - (desligando) O que foi que disse mesmo?
2 - Que no sábado eu fiquei em casa.
(...)
1 - O que vai fazer no próximo sábado a noite?
2 - Sair.
1 - Vai para...?
2 - Sair por aí rumo a algum lugar que não sei bem.
1 - E...
2 - Vou até onde o dinheiro der.
1 - Prostituta!
(...)
2 - Quando cheguei em casa havia um recado na secretária eletrônica. Era deste mesmo homem que conheci há algums dias atrás por puro acaso. O meu número só passei porque ele me deu um cartão pessoal que joguei na bolsa sem nem sequer olhar; não achei que fosse ligar. Nunca ligam. Eu também não ligo para ser sincera. Peguei o cartão por formalidade, para não estragar a noite. O recado na secretária? Não dizia muita coisa, apenas: "Oi! Estava pensando em sair no proximo sábado. O que acha? Quando der me liga." Ouvi, apaguei e não liguei. E melhor manter assim do que estragar tudo. Mas o cartão ainda continua na bolsa.
1 - As coisas já estão estragadas. Elas começam estragadas. Se temos algum problema, é porque tentamos concertá-las. É uma mania que temos em manter as coisas em ordem, tudo ajeitado como supostamente deveria ser, funcionando como um relógio de baterias novas. Eu prefiro ter que dar corda todo o dia de manhã, já sabendo que não vai ser o suficiente para o dia todo, e que o relógio vai parar. Desta forma eu ligo. Sempre. Se é para estragar que estrague de uma vez, para que volte ao normal.
2 - No sábado fui para o mesmo lugar em que nos encontramos por acaso. Fiquei por lá. Esperando.
1 - Liguei varias vezes até ela atender. E atendeu. Sabia que cedo ou tarde ela não iria resistir. Elas esperam que liguemos no dia seguinte, mas nunca uma semana depois. Ligo no dia seguinte e uma semana depois.
Num outro sábado, numa conversa pouco descontraída, menos risos, sem piadinhas. Pausas grandes durante a conversa. Assuntos pela metade.
1 - ...
2 - ...
Toca o telefone.
1 - Alô...
2 - Chegando lá, me encostei num canto. Os olhos fixos...
1 - Não, esse número não é da Madalena.
2 - A boca intacta por toda a noite...
1 - É um homem quem fala.
2 - A pele seca.
1 - Não sou a Madalena.
2 - Tive prazer em espera você aparecer. Hora certa, momento exato...
1 - Foi engano.
2 - Mas não foi.
1 - (desligando) O que foi que disse mesmo?
2 - Que no sábado eu fiquei em casa.
(...)
quarta-feira, dezembro 17, 2008
Na estrada eu digo
Dois homens sentados em um banco que fica a beira de uma estrada de terra. Essa estrada e longa e parece não ter fim tanto para um lado quanto por outro. Faz muito calor, a expressão dos dois homens e de absoluto cansaço.
1 – Encontrei-me com um desconhecido e disse o que aconteceu com a gente.
2 – Por quê?
1 – É mais fácil dizer para quem não conhecemos. (como num suspiro) As coisas ficam mais leve.
2 – Contou por contar?
1 – Por necessidade.
(tempo)
2 – E agora como se sente?
1 – Ele ouviu e depois foi embora. Não mudou muita coisa. (para o outro) Da mesma forma.
2 – Não adiantou muita coisa.
1 – A gente sempre espera uma resposta, não é?
(tempo)
2 – Conta pra mim...
1 – O que eu contei para aquele desconhecido? (Pausa) Não posso.
2 – Por quê?
1 – Porque é sobre você. Disse a ele o que gostaria de dizer para você, mas que não tive coragem. Ainda...
2 – Eu não vou ficar esperando o tempo todo.
1 – Eu não quero que me espere.
2 – Eu sozinho não dou conta.
1 – Então me espere...
(tempo)
2 – Sobre o que aconteceu com a gente, que fique só entre a gente. Se mais alguém souber teremos que explicar e explicar e explicar...
1 – Pensei que não ligava.
2 – De uma maneira ou de outra a gente sempre liga.
(tempo)
1 – Eu vou ter que sair por uns tempos. Você me espera...
2 – Eu não posso esperar por muito tempo.
1 – Eu sei. É só o tempo de encontrar um outro desconhecido.
2 – Pra quê?
1 – Para ver se dessa vez recebo uma resposta.
2 – Esperarei um tempo, depois irei embora.
1 – ...
2 – Se não tiver sua resposta não terá a minha.
1 – E qual é a pergunta?
2 – Não tenho coragem de dizer, ainda... Na estrada eu digo.
(tempo)
1 – A gente vai pra onde depois daqui?
2 – (apontando um dos lados) Por esse lado a estrada leva pra uma cidade bem pequena.
1 – É longe.
2 – Se já tiver a sua resposta, não.
(tempo)
1 – Eu vou procurar um desconhecido...
2 – (pausa) Eu esperarei...
1 – (interrompendo) Não me espere por muito tempo, talvez não dê tempo de voltar.
(Saindo)
2 – (Num rompante) Se encontrar um desconhecido...
1 – (Voltando) O quê?
2 – Se encontrar um desconhecido diga a ele que eu ainda estarei te esperando, mesmo que não volte. E que o que aconteceu entre nós dois é para todo mundo ficar sabendo.
1 – Eu digo sim...
(Sai de cena. O homem 2 permanece sentado enquanto vê o outro caminhar pela longa estrada de terra)
[renato ribeiro]
1 – Encontrei-me com um desconhecido e disse o que aconteceu com a gente.
2 – Por quê?
1 – É mais fácil dizer para quem não conhecemos. (como num suspiro) As coisas ficam mais leve.
2 – Contou por contar?
1 – Por necessidade.
(tempo)
2 – E agora como se sente?
1 – Ele ouviu e depois foi embora. Não mudou muita coisa. (para o outro) Da mesma forma.
2 – Não adiantou muita coisa.
1 – A gente sempre espera uma resposta, não é?
(tempo)
2 – Conta pra mim...
1 – O que eu contei para aquele desconhecido? (Pausa) Não posso.
2 – Por quê?
1 – Porque é sobre você. Disse a ele o que gostaria de dizer para você, mas que não tive coragem. Ainda...
2 – Eu não vou ficar esperando o tempo todo.
1 – Eu não quero que me espere.
2 – Eu sozinho não dou conta.
1 – Então me espere...
(tempo)
2 – Sobre o que aconteceu com a gente, que fique só entre a gente. Se mais alguém souber teremos que explicar e explicar e explicar...
1 – Pensei que não ligava.
2 – De uma maneira ou de outra a gente sempre liga.
(tempo)
1 – Eu vou ter que sair por uns tempos. Você me espera...
2 – Eu não posso esperar por muito tempo.
1 – Eu sei. É só o tempo de encontrar um outro desconhecido.
2 – Pra quê?
1 – Para ver se dessa vez recebo uma resposta.
2 – Esperarei um tempo, depois irei embora.
1 – ...
2 – Se não tiver sua resposta não terá a minha.
1 – E qual é a pergunta?
2 – Não tenho coragem de dizer, ainda... Na estrada eu digo.
(tempo)
1 – A gente vai pra onde depois daqui?
2 – (apontando um dos lados) Por esse lado a estrada leva pra uma cidade bem pequena.
1 – É longe.
2 – Se já tiver a sua resposta, não.
(tempo)
1 – Eu vou procurar um desconhecido...
2 – (pausa) Eu esperarei...
1 – (interrompendo) Não me espere por muito tempo, talvez não dê tempo de voltar.
(Saindo)
2 – (Num rompante) Se encontrar um desconhecido...
1 – (Voltando) O quê?
2 – Se encontrar um desconhecido diga a ele que eu ainda estarei te esperando, mesmo que não volte. E que o que aconteceu entre nós dois é para todo mundo ficar sabendo.
1 – Eu digo sim...
(Sai de cena. O homem 2 permanece sentado enquanto vê o outro caminhar pela longa estrada de terra)
[renato ribeiro]
domingo, dezembro 14, 2008
sábado, dezembro 13, 2008
Para além do comum
Era um final de semana, era noite, eram estrelas que se viam no céu... era uma noite para além do comum!
O tempo quente e dilatado. Na sala da casa pouco arrumada, dois homens. Ouvia-se atravessar o ambiente, algumas músicas de Edith Piaf. Sonoro! Um dos homens estava sentado em uma poltrona enquanto o outro estendia-se sobre as almofadas jogadas ao chão. Calor!
Ora ou outra olhares intensamente pulsantes eram trocados entre estes dois, duo de olhos negros como a noite; e nada era dito, absolutamente nada, mas qualquer intenção de se dizer algo – inútil! - era antecipadamente compreendida. Era a conversa mais silenciosa que se pode imaginar.
No momento cimo deste palavrear mudo, soou a canção certa. Edith!
Sem erguer um milímetro a mais do que o normal as suas sobrancelhas, eles, numa confidência íntima, firmaram um segredo. Após, um deles, o que estava estirado sobre as almofadas, levantou-se e caminhou rumo ao banheiro. Passos longos! Longos! Long...! Lo...! Ouvia-se agora o barulho da água do chuveiro abalroar como o chão. Água fria!
Era noite, eram estrelas que se viam no céu... era uma noite para além do comum!
Ouvia-se da sala a voz do homem que do banheiro acompanhava a música da Edith. Um novo cigarro tinha sido acesso e tragado várias vezes pelo outro homem, ainda recostado na poltrona, as cinzas já não mais cabiam no pequeno cinzeiro. Tarde intensamente quente! De súbito o homem levantou-se, desligou a vitrola e retirou o disco que permaneceu em trabalho por todo o dia. A voz da Edith parou, mas a do homem que se banhava sob a água fria, não. Por toda a casa ainda ecoava a melodia. Sonoro!
Quem estivesse a caminhar frente à casa por aquele exato momento, poderia supor que algo estava acontecendo. E estava! Muita coisa, naquela noite, entre aqueles dois homens, estava acontecendo.
Eram estrelas que se viam no céu... era uma noite para além do comum!
O chuveiro foi desligado!
Entrando pela sala, enrolado numa toalha, o homem que se banhava, reafirmou o combinado com o negrume de seus olhos. Olhos fixos de um, olhos fixados do outro.
Toalha!
Aproximaram-se os dois, tanto que puderam sentir a respiração do outro como sendo a própria. Inspiração! E melodiosamente, sem que tivesse sido posto por qualquer um deles, Edith, como num misterioso gesto de compreensão, voltou a cantar. Desta vez silenciosamente! A música que agora ecoava pelos ouvidos dos dois homens era somente para eles. Simples! Como numa noite para além do comum.
E era final de semana...
Era noite...
Eram estrelas que se viam no céu...
Era uma noite para além do comum!
[renato ribeiro]
quinta-feira, dezembro 11, 2008
Rito de passagem
Aos olhos que tanto vê...
Um corpo estendido no chão e sobre o corpo, várias folhas secas que se movem com o soprar dos ventos. Ele dentro de um círculo de sal grosso, num solo sagrado, buscando complementar-se num ritual. A fundo ouvem-se tambores que tocam fortes. Um jovem rapaz que experimenta a sensação de estar fora de si. Senhoras cantam uma oração a algum deus, uma evocação a uma energia maior. Não é um rito comum, não é simplesmente um rito de iniciação, e sim a passagem de um estado morto para outro. As folhas, os cantos e as senhoras que agora giram suas longas saias brancas ao redor do moço ao som dos tambores. Num espasmo, o corpo inerte se move. Era um movimento não previsto nesse ritual codificado e preciso. Ele se moveu e as senhoras pararam de rodar. O corpo do rapaz talvez não tivesse preparado para avançar a esse estágio. A falta de um rito de preparação talvez fosse o problema. Esse rapaz chegou tão disposto a fazer a passagem que qualquer dúvida sobre sua preparação entender-se-ia como uma ofensa aquele desejo de atravessar-se nesse ritual.
Era um rapaz que procurava um nascimento. Acreditava, e eu também acredito, que o seu período de gestação já havia cessado e que a hora de gritar e romper com o cordão já estava para acontecer. Esse rapaz, que mal se sabia o nome naquela roda de mulheres e sons de tambores, sem saber, havia decidido nascer a pouco tempo antes de se encontrar ali. Sim, foi uma decisão tomada por impulso, mas uma decisão verdadeira. O rapaz era um bom rapaz e jovem, eu me permito tal redundância.
Duas noites anteriores poder-se-ia encontrar com esse mesmo rapaz a andar por alguns becos escuros da sua cidade, sempre na companhia de alguns homens mais velhos. E nessas sombras escondidas do restante do mundo e principalmente dos transeuntes curiosos, ele se perdia, ou se encontrava, envolto em braços mais fortes e grosseiros. E após se encontrar – ou se perder – por alguns minutos, com olhos atentos a quem poderia encontra naquele lugar, saiam os dois a passos largos e sorrisos cerrados. E numa divisão de rua, cada qual seguia o seu caminho. Pouco se importava ao rapaz se o veria novamente e acredito passar o mesmo na cabeça desse outro homem.
Esse rapaz encaminhava-se para o bar. Ele tinha o hábito de sentar-se num bar, um pouco afastado do centro da cidade, sozinho, e ficar por ali horas, bebendo sua cerveja e observando qual daqueles homens, seria homem para não ser isento há um instante apenas. Nada se percebia em seu corpo. Ele não dizia nada, a não ser seu olhar rápido e incisivo. Naquele bar nenhuma palavra valia a pena ser dita. As pessoas não queriam falar. Exceto o garçom que por uma falsa simpatia comentava sobre o noticiário do dia.
– O moço ficou sabendo do acidente que ocorreu hoje à tarde?
– ...
– Dizem que foi um dos maiores que ocorreu até hoje. No noticiário não se falou de outra coisa. No rádio também não. Houve duas mortes. Duas mortes estranhas para ser sincero. Não consegui compreender direito, mas no próximo noticiário devem fazer uma reportagem melhor. Mais explicada.
– Depois então você me conta - Respondeu o rapaz.
– É sempre assim, as notícias não chegam como deveriam. A gente está praticamente do lado do acidente e não consegue saber nada direito. Só informações trocadas. Noticias de boca a boca não informam. Aumenta, exagera.
– Você poderia ligar o rádio?
– Isso mesmo! No rádio pode ser que avise alguma coisa.
E com a intenção de cortar aquele monólogo que estava sendo obrigado a escutar, o rádio foi ligado. Mas a atenção do rapaz estava apenas em seu copo de cerveja e em alguns homens assentados por perto. Com o rádio ligado, as falas do garçom passavam a ser mais curtas e diretas, para que não perdesse qualquer informação dado pelo repórter.
Entrou então, pela porta do bar, um outro rapaz. Olhar baixo, corpo magro. Ele se assentou na bancada próximo à mesa onde se encontrava o nosso rapaz. E dessa vez não foi ele quem olhou, o outro olhou incisivamente para a mesa do nosso primeiro rapaz e se virou para pedir uma cerveja. Eram dois rapazes. Pegando sua cerveja na bancada, ele se levantou vagarosamente – pensou o rapaz sentado à mesa que ele iria embora e que se tivesse que conseguir alguma coisa deveria correr atrás, como sempre acontecia. Um olhar, uma caminhada, uma perseguição... – e a passos curtos ele se aproximou da mesa do nosso rapaz e sentou-se sem pedir. Frente a frente os dois rapazes, um olhava para o outro, e os dois com olhares fortes. Nenhuma palavra dita. No restante do bar alguns burburinhos sobre mais uma notícia dada pelo garçom. Os dois tomaram cada qual a sua cerveja, entre olhares e silêncios. E por fim esse rapaz, que se assentou sem permissão, levantou-se e caminhou em direção a porta. E lá ficou parado. Acreditou o rapaz sentado à mesa, que ele estivesse o esperando e por pensar assim, ele foi e se pôs ao lado dele.
– As coisas por aqui não estão muito boas... – disse o nosso rapaz a fim de ouvir a cor da voz do outro.
– Vem comigo. Respondeu o desconhecido sem dizer uma palavra a mais.
Caminharam a passos largos. A essa hora da noite a rua já estava vazia. Um ou dois cachorros corriam pela rua revirando lixo a procura de comida. Alguns sons noturnos e nada mais. Nem neblina havia àquela hora. Era uma madrugada limpa e fria.
Numa das curvas feitas pelos os dois, nosso rapaz deu de frente com a Dona Chica, uma mulher que costumava caminhar à noite a procura de pessoas que tivessem a necessidade de fazer alguma passagem. Como ela acreditava, e assim também acredito. O rapaz parou por uns instantes e olhou diretamente para a senhora que também o encarou. O rapaz sabia o que aquilo poderia significar. Dona Chica era um agouro de morte! Assim pensavam todos. Mas o acidente que ocorrera há horas atrás, chamava por ela. Era mais uma louca de uma cidade pequena que acredita demais em suas loucuras.
Passando por essa senhora, ele continuou seguindo o rapaz, que já estava bem à frente. Chegaram os dois em um beco. Nada diferente do que nosso rapaz já habituara a fazer. Frente a frente um do outro, o rapaz desconhecido e de pouquíssimas palavras, olhou mais uma vez para o nosso rapaz e lhe deu um beijo longo. Afoito com a situação, o nosso rapaz colocou sua mão por entre as pernas desse desconhecido a fim de fazer ali, o que havia feito horas antes num outro lugar. Mas não foi assim. Esse rapaz desconhecido, após terminar o beijo dado por si mesmo e retribuído pelo rapaz, olhou novamente para ele e disse de forma fria:
– Já tive o que queria. Agora vai embora.
Surpreso com a situação, nosso rapaz não teve opção a não ser sair dali e deixá-lo sozinho naquele beco. Ele caminhando, olhava para trás buscando algum sinal de que era pra voltar. E numa dessas olhadas ele viu esse desconhecido se masturbando de forma intensa e satisfatória. Nosso rapaz caminhava. E já não olhava mais pra trás. Foi para casa sem entender o que de fato aconteceu naquela noite.
No dia seguinte como se fosse um ritual pessoal, ele foi até o bar, mas não para lançar olhares perdidos por entre as paredes do espaço, mas para ter a chance de rever aquele outro rapaz que não lhe deu a oportunidade de fazer, nem dizer absolutamente nada. Apesar de acreditar que não havia nada a ser dito realmente.
Sentado à mesa, ouvindo discursos do garçom sobre o acidente da noite anterior comentado agora com mais propriedade e detalhes, ele bebia a sua cerveja e olhava de tempo em tempo para a porta. Numa esperança infantil de rever por um instante sequer aquele outro rapaz. O garçom falava sobre o acidente de carro, quando tentando cala-lo, ele pediu para que ligasse o rádio. E o garçom fez. A sua necessidade de saber cada vez mais detalhes era tamanha, que qualquer outra informação seria útil para estender mais uma futura conversa. Mas naquele instante, o rapaz queria apenas o silêncio e a expectativa. O rádio ligado, os burburinhos do bar, interjeições do garçom sobre a deficiência de informações e entre todos esses estados, se é que se pode chamar de estados, mas me permito chamar assim, mais um plantão. Do rádio ouvia-se sobre um assassinato. Um homem que havia sido esfaqueando na noite anterior. Informação que chamou a atenção do rapaz por alguns instantes. Mas era apenas uma manchete, mais nada, para a revolta do garçom.
Decidido não mais esperar pelo outro rapaz, que poderia nunca mais aparecer, novamente o nosso rapaz voltou a lançar olhares perdidos pelo bar. Não demorou muito e ele encontrou um outro olhar que discretamente também procurava por um. Os dois levantaram-se e caminharam até a porta.
– As coisas por aqui não estão boas. Disse o homem que era alto, truculento e que parecia ser bastante rude.
– Nada além do comum.
– Tem um outro lugar...
– Vamos. Respondeu o rapaz sem esperar que ele terminasse de dizer o que pretendia. Era como ele sempre pensava. Às vezes não é necessário falar.
Caminharam até um beco escuro e dessa vez, diferentemente da noite anterior, mas idêntica a todas as outras, os dois se perderam e se acharam naquele beco escuro entre gemidos e respirações. Movimentos fortes e grosseiros daquele homem em contraponto aos gestos de quem se entrega e cede a um alguém de maior força.
Após o gozo, ainda encostados um no outro, após uns segundos de silêncio e apnéia, o rapaz por impulso pede ao homem que o atravesse com um ferro frio. O homem surpreendentemente não hesita e retira da bainha da calça um canivete. E então ele sente entrando suavemente em sua barrida um pedaço fino, frio. Seu corpo estava tão quente que não houve dor, apenas a sensação provocada pela diferença de temperatura. Da boca do homem saiam frases que não condiziam com o prazer do minuto anterior. Era um outro homem. Mais forte, mais macho. Mas depois de um tempo com o ferro frio dentro da barrida, não se podia ouvir mais nada, a não ser um agudo som vindo de dentro da cabeça do rapaz e que só poderia ser ouvido por ele mesmo.
Abandonando o corpo do rapaz no chão, o homem se virou e saiu. Não hesita novamente, não olha para trás. O corpo quente do rapaz vai perdendo o calor até à hora em que seus olhos se fecham.
Horas depois, o corpo desse rapaz já não estava mais lá. O seu corpo agora estava estendido no chão, sob várias folhas secas que se moviam com o soprar do vento. Ele estava dentro de um círculo de sal grosso, num solo sagrado, era a busca pela realização de um ritual. Ao fundo ouviam-se tambores que tocavam fortes. Esse jovem rapaz que experimenta a sensação de estar fora de si. Senhoras cantavam uma oração a algum deus, uma evocação a uma energia maior. Não é um rito comum, não é simplesmente um rito de iniciação e sim a passagem de um estado morto para outro.
As folhas, os cantos, e as senhoras que agora giram suas longas saias brancas ao redor do moço ao som dos tambores. Num espasmo o corpo inerte se move. As senhoras pararam de rodar. As senhoras pensaram que este corpo repousado no chão não estava pronto para avançar mais um estágio. A falta de um rito de preparação talvez fosse o problema. Dona Chica, que encontrou o corpo no beco escuro, e que ao vê-lo percebeu que a disposição do rapaz a fazer a passagem era maior, não achou que fosse necessário fazer um rito de preparação.
Dona Chica, como dito anteriormente, era uma senhora misteriosa que andava pelas ruas à noite a procura de quem estivesse disposto a fazer a passagem. Ela encontrou o rapaz deitado no chão com a respiração por um fio e com os olhos brilhando a ponto de fazer reluzir qualquer coisa a sua volta. Era de fato um chamado a Dona Chica, um verdadeiro chamado. Dona Chico o pegou pelos braços e o levou até o local onde costumava fazer o seu ritual. E sem hesitar por um segundo sequer, iniciou o processo de passagem desse rapaz.
Um espasmo. Talvez fosse necessário uma preparação, pensou Dona Chica jogando um líquido de cheio sobre o corpo do rapaz com um galho de folhas bem verdes, a fim de fazê-lo acalmar-se. As outras senhoras pararam e puseram-se a olhar Dona Chica, que mesmo surpresa com o acontecido, ainda sim se matinha ciente do que deveria fazer. Ela entoando um canto clamoso e purificando o corpo do rapaz com sua água de cheiro, pensava na vida desse jovem rapaz, que tão cedo decidiu fazer a passagem. Dona Chica não sabia nada sobre o rapaz e acreditava que pouca gente saberia dizer algo.
Esse nosso rapaz por muitas vezes foi visto a caminhar sorrateiramente pelos becos da cidade. Soturno esse rapaz. Sempre sozinho, apesar de nunca estar. Ele era bastante astuto pra saber manter em segredo as suas estripulias noturnas. Esse rapaz que desejou de forma tão prazerosa ser atravessado por um ferro frio, na verdade já havia presenciado outras inúmeras vezes, outros momentos de passagem. A morte já não lhe fazia medo, nem lhe causava surpresas. Ele há muito tempo vinha alimentando o desejo de ter a morte bem próxima de si. Parentes, conhecidos, amigos... todos sem exceção de nenhum, haviam passado. Como? Isso nem eu sei. Apenas posso afirmar que ele presenciou cada passagem de perto. Cada instante. Não pensem mal dele. Ele não seria capaz de fazer nada. Nem tão pouco teve algo haver com a morte de cada pessoa. É que algumas pessoas têm maior vocação para acompanhar de perto às desincorporações ou simplesmente são agourentas. Se pensarmos na segunda opção, esse rapaz seria um agouro de morte, assim como Dona Chica. A morte estava tão próxima dele em todos os momentos, que ele acreditou que deveria trazê-la para dentro de si. Por isso o desejo latente em fazer a passagem.
Dona Chica completou seu canto e o corpo do rapaz se acalmara. Estava novamente quieto. Estendido sobre um círculo de sal grosso. A respiração dele, nesse momento, estava mais forte, mais presente. Não era a hora. O rapaz não completou. Havia estado por um fio, mas este foi suficientemente forte para trazê-lo de volta. Agora de olhos abertos, e não tão brilhantes como quando chegou, ele se levantou olhou a sua volta, e sem surpresa ou fazer qualquer pergunta saiu desse espaço sagrado. Dona Chica e as outras senhoras, compreendendo a precocidade do ritual, também não disseram nada. Apenas observaram esse rapaz retirar-se dali. Ele caminhou por entre as ruas iluminadas pelo nascer do sol em direção a sua casa.
Na noite seguinte, este mesmo rapaz que teve a morte a pouca distância de seu corpo, estava no mesmo bar como de costume. Mas desta vez ele não estava com olhares à procura de outros. E nem estava querendo que o garçom cessasse seu constante informativo. Desta vez este nosso rapaz estava próximo ao balcão, com um copo de cerveja nas mãos, pedindo a atenção de todos os outros homens que se encontravam no bar. Ele queria dizer algo e para isso precisava da atenção de todos. Há muito contragosto dos demais freqüentadores deste bar, que além de suportar os dizeres do garçom, agora teriam que aturar um discurso qualquer, o nosso rapaz iniciou os dizeres.
– Simplesmente pontual - disse o rapaz - Não tenho mais nada a fazer a não ser, ser pontual. Se é que conseguirei. De todos os senhores aqui presente, que pouco se importam com qualquer outro senhor, ou que mal conhece o outro, e que frequentemente cruzam olhares entre si, despretensiosos, mas sempre incisivos, posso afirmar com prazer, que me encontro aqui, não por desejar permanecer nesse lugar, que por muitas vezes me auxiliou e afirmou o desejo de ter em mim uma lânima na barriga, mas para ter o prazer de apontar todos os homens que assim como eu se esgueiram por becos escuros. Para fazer o quê? Eu não preciso dizer. Está aí. Os olhares perdidos que entre um gole ou outro, discretamente convidam rapazes, que como eu, vem para cá em busca de perder-se entre respirações ofegantes e olhares fulminantes. Desejo! Todos estão ardendo em desejos. Se for para ser pontual, que seja assim. Completem seu rito de passagem. Ardam em desejo! Todos! Tirando um ou outro covarde que ainda se esconde por debaixo das luzes. E é isso que tenho para dizer aos senhores corajosos.
Ninguém no bar sabia o porquê daquele discurso, ou por que ouviram de forma tão atenta, cada palavra que o rapaz pronunciou. Acredito que ele nunca falou tanto como neste momento e que talvez nunca fale mais de maneira tão intensa. Ele rompeu com o cordão, assim acredito. Então nosso rapaz saiu pela porta do bar, após ter bebido de uma só vez a cerveja que estava em seu copo deixando-o em silêncio, a não ser pelo chiado quase mudo do rádio do garçom.
[renato ribeiro]
Obs.: Gosto muito deste texto.
segunda-feira, dezembro 08, 2008
[encontro com Mrs. Dalloway]
2. Flores
“Eu mesmo vou comprar flores”. Primeira frase que permeou minha cabeça, logo após a incisão da luz do sol pela fresta da janela semi-cerrada; e que permaneceu por toda manhã. Gélida como estava a alvorada e eu sentado na poltrona da varanda, a observar os seletos transeuntes que se arriscavam em passeios matinais, enquanto conservava o calor do meu corpo envolto numa manta, pensava sensatamente em fazer valer este pensamento solto que de súbito me despertou. Talvez fosse realmente sensato organizar uma pequena reunião. Preparar-se para tornar-se anfitrião e lançar-se sob olhares críticos, prontos para desaprovar-me no mais ínfimo descuido. Um risco e acima de tudo uma correção ao insistente erro de não fazer-se notar. Homens da minha idade não podem se privar de pequenos contatos com outros senhores e também senhoras. Morando só, já a alguns anos, sem ter ao lado por tempo suficientemente considerável, alguém a quem pudesse chamar de companheira, para não findar o tempo afundado em poltronas de coura em varandas frias, poderia claramente pensar em pequenos encontros como sendo o proponente, fazendo valer a idade que possuo e a maturidade esperada por ela. “Eu mesmo vou encomendar as flores”, disse firmemente.
À tarde, sentado à mesa do restaurante do centro da cidade, logo após o almoço; o que se configura como uma desvantagem de [ser-se] se viver só, os almoços passam a ser solitários em sua maioria, salvo algumas ocasiões esporádicas em que, sejam por negócios ou por amizades antigas, alguém nos faz pequenas companhias; após o almoço dirigi-me até a floricultura, também próxima ao centro. Queria flores frescas e de boa qualidade, dignas de uma recepção bem sucedida. Flores de como quando, no século passado, um indivíduo era apresentado à sociedade. Um pensamento arcaico, mas que conserva em si as mais puras e precisas intenções de oferecer a esta altura dos não-acontecimentos uma festa. Talvez seja uma tentativa de retroceder o tempo. Experimentar novamente. Sucedido o horário de almoço, com toda a cidade num ritmo acelerado, homens andando a largos passos, com o único intuito de não perder a hora, e meu pensamento absolutamente lento, como uma pétala repousada sobre um lago calmo. Flores. Não havia necessidade de se ter presa, era apenas uma encomenda. Talvez orquídeas ou azaléias ou um arranjo misto pra o centro da mesa.
Ao adentrar pela porta da floricultura observando os inúmeros arranjos dispostos sobre bancadas para pura apreciação e encanto, num lancinante festejo de cores e aromas, penso como a leviandade pode ser amarga em seu fundamento mais simples.
“Possa auxiliar o senhor no que deseja?”, perguntou a funcionária com um sorriso tão ensaiado quanto a minha suposta reação a um encontro inesperado.
“Gostaria de encomendar flores para daqui a dois dias?”, respondi pontualmente.
“Flores de que qualidade?”
“As melhores para uma recepção simples. Penso em tulipas de diversas cores.” Não eram mais orquídeas, nem azaléias. “Tulipas” - e após refletir um pouco - “E uma arranjo de açucenas para a mesa”.
“Tulipas e um arranjo de mesa feito com açucenas para daqui a dois dias. O senhor deseja que seja entregue em sua casa?”
“Eu mesmo venho buscá-las”. Respondi com um prazer para além do comum, como se fosse a própria Mrs. Dalloway.
“Eu mesmo vou comprar flores”. Primeira frase que permeou minha cabeça, logo após a incisão da luz do sol pela fresta da janela semi-cerrada; e que permaneceu por toda manhã. Gélida como estava a alvorada e eu sentado na poltrona da varanda, a observar os seletos transeuntes que se arriscavam em passeios matinais, enquanto conservava o calor do meu corpo envolto numa manta, pensava sensatamente em fazer valer este pensamento solto que de súbito me despertou. Talvez fosse realmente sensato organizar uma pequena reunião. Preparar-se para tornar-se anfitrião e lançar-se sob olhares críticos, prontos para desaprovar-me no mais ínfimo descuido. Um risco e acima de tudo uma correção ao insistente erro de não fazer-se notar. Homens da minha idade não podem se privar de pequenos contatos com outros senhores e também senhoras. Morando só, já a alguns anos, sem ter ao lado por tempo suficientemente considerável, alguém a quem pudesse chamar de companheira, para não findar o tempo afundado em poltronas de coura em varandas frias, poderia claramente pensar em pequenos encontros como sendo o proponente, fazendo valer a idade que possuo e a maturidade esperada por ela. “Eu mesmo vou encomendar as flores”, disse firmemente.
À tarde, sentado à mesa do restaurante do centro da cidade, logo após o almoço; o que se configura como uma desvantagem de [ser-se] se viver só, os almoços passam a ser solitários em sua maioria, salvo algumas ocasiões esporádicas em que, sejam por negócios ou por amizades antigas, alguém nos faz pequenas companhias; após o almoço dirigi-me até a floricultura, também próxima ao centro. Queria flores frescas e de boa qualidade, dignas de uma recepção bem sucedida. Flores de como quando, no século passado, um indivíduo era apresentado à sociedade. Um pensamento arcaico, mas que conserva em si as mais puras e precisas intenções de oferecer a esta altura dos não-acontecimentos uma festa. Talvez seja uma tentativa de retroceder o tempo. Experimentar novamente. Sucedido o horário de almoço, com toda a cidade num ritmo acelerado, homens andando a largos passos, com o único intuito de não perder a hora, e meu pensamento absolutamente lento, como uma pétala repousada sobre um lago calmo. Flores. Não havia necessidade de se ter presa, era apenas uma encomenda. Talvez orquídeas ou azaléias ou um arranjo misto pra o centro da mesa.
Ao adentrar pela porta da floricultura observando os inúmeros arranjos dispostos sobre bancadas para pura apreciação e encanto, num lancinante festejo de cores e aromas, penso como a leviandade pode ser amarga em seu fundamento mais simples.
“Possa auxiliar o senhor no que deseja?”, perguntou a funcionária com um sorriso tão ensaiado quanto a minha suposta reação a um encontro inesperado.
“Gostaria de encomendar flores para daqui a dois dias?”, respondi pontualmente.
“Flores de que qualidade?”
“As melhores para uma recepção simples. Penso em tulipas de diversas cores.” Não eram mais orquídeas, nem azaléias. “Tulipas” - e após refletir um pouco - “E uma arranjo de açucenas para a mesa”.
“Tulipas e um arranjo de mesa feito com açucenas para daqui a dois dias. O senhor deseja que seja entregue em sua casa?”
“Eu mesmo venho buscá-las”. Respondi com um prazer para além do comum, como se fosse a própria Mrs. Dalloway.
(renato ribeiro)
quinta-feira, dezembro 04, 2008
Procura-se (fragmento)
Um homem e uma mulher sentados em uma sala à parte de um estúdio de televisão que é bem simples. Eles estão esperando o intervalo passar para novamente voltarem.
Mulher: Você não foi o mesmo como de costume. Faltou um pouco mais de energia.
Homem: É verdade... não convenci muito não é?
Mulher: Nem um pouco. Quer tentar de novo?
Homem: Agora?
Mulher: No próximo quadro. Pode ser que desta vez consiga ser mais convincente em sua performance. (Pausa) Não estou querendo pressionar. Se não quiser a gente pula esse.
Homem: ‘Me dá’ alguns minutos?
Mulher: Você é quem sabe.
Homem: Pra falar a verdade eu estou um pouco incomodado, não estou acostumado com tanta gente olhando assim tão de perto. Antes de começar, eu penso que tudo vai seguir como tem que seguir, respiro fundo, repasso na minha cabeça tudo o que tenho que fazer e vou. Aí eu começo a sentir os olhares. Por todos os lados tem alguém observando, vou ficando constrangido, mais constrangido e acaba que não flui com naturalidade.
Mulher: Não dá para fingir um pouquinho? Pensar em outras coisas na hora, fazer de conta que está totalmente ali e que aquele é o seu momento?
Homem: Não.
Mulher: Se eu trocar de roupa... Ajuda?
Homem: Você quer trocar de roupa?
Mulher: Pra mim tanto faz. Preto, vermelho, rosa; longo, comprido; salto alto, sem salto... é tudo um complemento. No momento o que importa mesmo é a quantidade de pessoas. Quanto mais, mais intenso. Eu nem penso, quando dou por mim eu já estou ali no meio tomada por uma coisa que nem sei o que é. É tão fácil.
Homem: Você gosta mesmo, não é?
Mulher: Gosto de verdade. Se têm uma coisa que não abro mão, é dessa sensação. O falecido detestava, achava um disparate. Dizia que isso não era pra gente normal. Besta! Reclamava até não poder mais, mas fez algumas vezes. Lembro que na primeira vez ele tava um pouco nervoso. Na verdade foi um ultimato, joguei a bomba e disse que se não topasse tava acabado. Não sou mulher pra homem ‘froxo’, não. Não sei se foi por medo ou pelo desejo, mas ele foi tão intenso, mas tão intenso, que saí com vergão por todo o corpo. Mas ele batia com uma força... e todos aplaudiam com fervor. Meu Deus! Um animal. É só lembrar que fico toda desconcertada. Depois dessa eu quis mais, normal todo mundo iria querer, mas não conseguiu ser a mesma coisa. Foi do máximo ao mínimo em questão de dias. Quando não conseguia mais, voltou com aquele discurso de que ele não gostava, de que não era desse tipo de homem, que tinha limite. No fundo no fundo todo mundo gosta. Quando não mostra, conta. Até mais do que deveria. É só pudor mesmo.
Homem: Terminou com ele por causa disso?
Mulher: Na verdade nós já estávamos desgastados. Essa foi uma tentativa de reerguer o que estava morto, morno. Eu até gostava dele. Era boa pessoa. Um homem que qualquer mulher gostaria de ter...
Homem: Como assim?
Mulher: De qualquer mulher que siga a linha tradicional. (Silêncio)
(renato ribeiro)
segunda-feira, dezembro 01, 2008
Flores.
(diálogo interior)
1- Hoje, como todos os dias, as flores do jardim perderam algumas de suas pétalas com o soprar dos ventos. Cada pétala seguiu o seu caminho.
2- Ontem eu vi como aconteceu. Caules verdes, pétalas cor de fogo num imenso campo.
1- Flores de fogo.
2- Com raízes bem profundas pelo o que parece. Certa vez perdia horas do dia tentando descobrir o tamanho de suas raízes. Utilizando uma pequena pá, cavando pela borda para que não a machucasse, fui retirando a terra e observando as suas raízes.
1- São como todas as raízes.
2- Não são. Estas são mais intensas que as outras “raízes de flores”. São mais fortes.
1- Em flores tão delicadas?
2- As raízes que não se mostram, são raízes amargas.
1- Nem as conhecem. E nem sequer chegou a ver até onde elas chegavam.
2- Mesmo assim eu senti o amargo. Não pelo gosto, mas pelo cheiro. As pétalas perfumadas e a raiz de odor amargo.
1- É o que acontece quando se tenta cavar fundo. Às vezes só olhar o intensidade da cor de cada pétala já basta para sentir prazer.
2- É o que acontece quando se tenta tocar, mesmo sendo flores sem espinhos.
1- Ainda bem que suas pétalas voam com o vento. Com o tempo o encanto acaba. Com o vento vai-se o prazer.
2- E as raízes permaneceram bem profundas.
1- Então não cave mais. Espere até a próxima primavera. Novas pétalas, novos prazeres.
2- Acompanhado de novos ventos...
1- É assim em todos os tempos.
2- Em todos os tempos.
(renato ribeiro)
1- Hoje, como todos os dias, as flores do jardim perderam algumas de suas pétalas com o soprar dos ventos. Cada pétala seguiu o seu caminho.
2- Ontem eu vi como aconteceu. Caules verdes, pétalas cor de fogo num imenso campo.
1- Flores de fogo.
2- Com raízes bem profundas pelo o que parece. Certa vez perdia horas do dia tentando descobrir o tamanho de suas raízes. Utilizando uma pequena pá, cavando pela borda para que não a machucasse, fui retirando a terra e observando as suas raízes.
1- São como todas as raízes.
2- Não são. Estas são mais intensas que as outras “raízes de flores”. São mais fortes.
1- Em flores tão delicadas?
2- As raízes que não se mostram, são raízes amargas.
1- Nem as conhecem. E nem sequer chegou a ver até onde elas chegavam.
2- Mesmo assim eu senti o amargo. Não pelo gosto, mas pelo cheiro. As pétalas perfumadas e a raiz de odor amargo.
1- É o que acontece quando se tenta cavar fundo. Às vezes só olhar o intensidade da cor de cada pétala já basta para sentir prazer.
2- É o que acontece quando se tenta tocar, mesmo sendo flores sem espinhos.
1- Ainda bem que suas pétalas voam com o vento. Com o tempo o encanto acaba. Com o vento vai-se o prazer.
2- E as raízes permaneceram bem profundas.
1- Então não cave mais. Espere até a próxima primavera. Novas pétalas, novos prazeres.
2- Acompanhado de novos ventos...
1- É assim em todos os tempos.
2- Em todos os tempos.
(renato ribeiro)
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