quinta-feira, dezembro 11, 2008

Rito de passagem


Aos olhos que tanto vê...

Um corpo estendido no chão e sobre o corpo, várias folhas secas que se movem com o soprar dos ventos. Ele dentro de um círculo de sal grosso, num solo sagrado, buscando complementar-se num ritual. A fundo ouvem-se tambores que tocam fortes. Um jovem rapaz que experimenta a sensação de estar fora de si. Senhoras cantam uma oração a algum deus, uma evocação a uma energia maior. Não é um rito comum, não é simplesmente um rito de iniciação, e sim a passagem de um estado morto para outro. As folhas, os cantos e as senhoras que agora giram suas longas saias brancas ao redor do moço ao som dos tambores. Num espasmo, o corpo inerte se move. Era um movimento não previsto nesse ritual codificado e preciso. Ele se moveu e as senhoras pararam de rodar. O corpo do rapaz talvez não tivesse preparado para avançar a esse estágio. A falta de um rito de preparação talvez fosse o problema. Esse rapaz chegou tão disposto a fazer a passagem que qualquer dúvida sobre sua preparação entender-se-ia como uma ofensa aquele desejo de atravessar-se nesse ritual.
Era um rapaz que procurava um nascimento. Acreditava, e eu também acredito, que o seu período de gestação já havia cessado e que a hora de gritar e romper com o cordão já estava para acontecer. Esse rapaz, que mal se sabia o nome naquela roda de mulheres e sons de tambores, sem saber, havia decidido nascer a pouco tempo antes de se encontrar ali. Sim, foi uma decisão tomada por impulso, mas uma decisão verdadeira. O rapaz era um bom rapaz e jovem, eu me permito tal redundância.
Duas noites anteriores poder-se-ia encontrar com esse mesmo rapaz a andar por alguns becos escuros da sua cidade, sempre na companhia de alguns homens mais velhos. E nessas sombras escondidas do restante do mundo e principalmente dos transeuntes curiosos, ele se perdia, ou se encontrava, envolto em braços mais fortes e grosseiros. E após se encontrar – ou se perder – por alguns minutos, com olhos atentos a quem poderia encontra naquele lugar, saiam os dois a passos largos e sorrisos cerrados. E numa divisão de rua, cada qual seguia o seu caminho. Pouco se importava ao rapaz se o veria novamente e acredito passar o mesmo na cabeça desse outro homem.
Esse rapaz encaminhava-se para o bar. Ele tinha o hábito de sentar-se num bar, um pouco afastado do centro da cidade, sozinho, e ficar por ali horas, bebendo sua cerveja e observando qual daqueles homens, seria homem para não ser isento há um instante apenas. Nada se percebia em seu corpo. Ele não dizia nada, a não ser seu olhar rápido e incisivo. Naquele bar nenhuma palavra valia a pena ser dita. As pessoas não queriam falar. Exceto o garçom que por uma falsa simpatia comentava sobre o noticiário do dia.
– O moço ficou sabendo do acidente que ocorreu hoje à tarde?
– ...
– Dizem que foi um dos maiores que ocorreu até hoje. No noticiário não se falou de outra coisa. No rádio também não. Houve duas mortes. Duas mortes estranhas para ser sincero. Não consegui compreender direito, mas no próximo noticiário devem fazer uma reportagem melhor. Mais explicada.
– Depois então você me conta - Respondeu o rapaz.
– É sempre assim, as notícias não chegam como deveriam. A gente está praticamente do lado do acidente e não consegue saber nada direito. Só informações trocadas. Noticias de boca a boca não informam. Aumenta, exagera.
– Você poderia ligar o rádio?
– Isso mesmo! No rádio pode ser que avise alguma coisa.
E com a intenção de cortar aquele monólogo que estava sendo obrigado a escutar, o rádio foi ligado. Mas a atenção do rapaz estava apenas em seu copo de cerveja e em alguns homens assentados por perto. Com o rádio ligado, as falas do garçom passavam a ser mais curtas e diretas, para que não perdesse qualquer informação dado pelo repórter.
Entrou então, pela porta do bar, um outro rapaz. Olhar baixo, corpo magro. Ele se assentou na bancada próximo à mesa onde se encontrava o nosso rapaz. E dessa vez não foi ele quem olhou, o outro olhou incisivamente para a mesa do nosso primeiro rapaz e se virou para pedir uma cerveja. Eram dois rapazes. Pegando sua cerveja na bancada, ele se levantou vagarosamente – pensou o rapaz sentado à mesa que ele iria embora e que se tivesse que conseguir alguma coisa deveria correr atrás, como sempre acontecia. Um olhar, uma caminhada, uma perseguição... – e a passos curtos ele se aproximou da mesa do nosso rapaz e sentou-se sem pedir. Frente a frente os dois rapazes, um olhava para o outro, e os dois com olhares fortes. Nenhuma palavra dita. No restante do bar alguns burburinhos sobre mais uma notícia dada pelo garçom. Os dois tomaram cada qual a sua cerveja, entre olhares e silêncios. E por fim esse rapaz, que se assentou sem permissão, levantou-se e caminhou em direção a porta. E lá ficou parado. Acreditou o rapaz sentado à mesa, que ele estivesse o esperando e por pensar assim, ele foi e se pôs ao lado dele.
– As coisas por aqui não estão muito boas... – disse o nosso rapaz a fim de ouvir a cor da voz do outro.
– Vem comigo. Respondeu o desconhecido sem dizer uma palavra a mais.
Caminharam a passos largos. A essa hora da noite a rua já estava vazia. Um ou dois cachorros corriam pela rua revirando lixo a procura de comida. Alguns sons noturnos e nada mais. Nem neblina havia àquela hora. Era uma madrugada limpa e fria.
Numa das curvas feitas pelos os dois, nosso rapaz deu de frente com a Dona Chica, uma mulher que costumava caminhar à noite a procura de pessoas que tivessem a necessidade de fazer alguma passagem. Como ela acreditava, e assim também acredito. O rapaz parou por uns instantes e olhou diretamente para a senhora que também o encarou. O rapaz sabia o que aquilo poderia significar. Dona Chica era um agouro de morte! Assim pensavam todos. Mas o acidente que ocorrera há horas atrás, chamava por ela. Era mais uma louca de uma cidade pequena que acredita demais em suas loucuras.
Passando por essa senhora, ele continuou seguindo o rapaz, que já estava bem à frente. Chegaram os dois em um beco. Nada diferente do que nosso rapaz já habituara a fazer. Frente a frente um do outro, o rapaz desconhecido e de pouquíssimas palavras, olhou mais uma vez para o nosso rapaz e lhe deu um beijo longo. Afoito com a situação, o nosso rapaz colocou sua mão por entre as pernas desse desconhecido a fim de fazer ali, o que havia feito horas antes num outro lugar. Mas não foi assim. Esse rapaz desconhecido, após terminar o beijo dado por si mesmo e retribuído pelo rapaz, olhou novamente para ele e disse de forma fria:
– Já tive o que queria. Agora vai embora.
Surpreso com a situação, nosso rapaz não teve opção a não ser sair dali e deixá-lo sozinho naquele beco. Ele caminhando, olhava para trás buscando algum sinal de que era pra voltar. E numa dessas olhadas ele viu esse desconhecido se masturbando de forma intensa e satisfatória. Nosso rapaz caminhava. E já não olhava mais pra trás. Foi para casa sem entender o que de fato aconteceu naquela noite.
No dia seguinte como se fosse um ritual pessoal, ele foi até o bar, mas não para lançar olhares perdidos por entre as paredes do espaço, mas para ter a chance de rever aquele outro rapaz que não lhe deu a oportunidade de fazer, nem dizer absolutamente nada. Apesar de acreditar que não havia nada a ser dito realmente.
Sentado à mesa, ouvindo discursos do garçom sobre o acidente da noite anterior comentado agora com mais propriedade e detalhes, ele bebia a sua cerveja e olhava de tempo em tempo para a porta. Numa esperança infantil de rever por um instante sequer aquele outro rapaz. O garçom falava sobre o acidente de carro, quando tentando cala-lo, ele pediu para que ligasse o rádio. E o garçom fez. A sua necessidade de saber cada vez mais detalhes era tamanha, que qualquer outra informação seria útil para estender mais uma futura conversa. Mas naquele instante, o rapaz queria apenas o silêncio e a expectativa. O rádio ligado, os burburinhos do bar, interjeições do garçom sobre a deficiência de informações e entre todos esses estados, se é que se pode chamar de estados, mas me permito chamar assim, mais um plantão. Do rádio ouvia-se sobre um assassinato. Um homem que havia sido esfaqueando na noite anterior. Informação que chamou a atenção do rapaz por alguns instantes. Mas era apenas uma manchete, mais nada, para a revolta do garçom.
Decidido não mais esperar pelo outro rapaz, que poderia nunca mais aparecer, novamente o nosso rapaz voltou a lançar olhares perdidos pelo bar. Não demorou muito e ele encontrou um outro olhar que discretamente também procurava por um. Os dois levantaram-se e caminharam até a porta.
– As coisas por aqui não estão boas. Disse o homem que era alto, truculento e que parecia ser bastante rude.
– Nada além do comum.
– Tem um outro lugar...
– Vamos. Respondeu o rapaz sem esperar que ele terminasse de dizer o que pretendia. Era como ele sempre pensava. Às vezes não é necessário falar.
Caminharam até um beco escuro e dessa vez, diferentemente da noite anterior, mas idêntica a todas as outras, os dois se perderam e se acharam naquele beco escuro entre gemidos e respirações. Movimentos fortes e grosseiros daquele homem em contraponto aos gestos de quem se entrega e cede a um alguém de maior força.
Após o gozo, ainda encostados um no outro, após uns segundos de silêncio e apnéia, o rapaz por impulso pede ao homem que o atravesse com um ferro frio. O homem surpreendentemente não hesita e retira da bainha da calça um canivete. E então ele sente entrando suavemente em sua barrida um pedaço fino, frio. Seu corpo estava tão quente que não houve dor, apenas a sensação provocada pela diferença de temperatura. Da boca do homem saiam frases que não condiziam com o prazer do minuto anterior. Era um outro homem. Mais forte, mais macho. Mas depois de um tempo com o ferro frio dentro da barrida, não se podia ouvir mais nada, a não ser um agudo som vindo de dentro da cabeça do rapaz e que só poderia ser ouvido por ele mesmo.
Abandonando o corpo do rapaz no chão, o homem se virou e saiu. Não hesita novamente, não olha para trás. O corpo quente do rapaz vai perdendo o calor até à hora em que seus olhos se fecham.
Horas depois, o corpo desse rapaz já não estava mais lá. O seu corpo agora estava estendido no chão, sob várias folhas secas que se moviam com o soprar do vento. Ele estava dentro de um círculo de sal grosso, num solo sagrado, era a busca pela realização de um ritual. Ao fundo ouviam-se tambores que tocavam fortes. Esse jovem rapaz que experimenta a sensação de estar fora de si. Senhoras cantavam uma oração a algum deus, uma evocação a uma energia maior. Não é um rito comum, não é simplesmente um rito de iniciação e sim a passagem de um estado morto para outro.
As folhas, os cantos, e as senhoras que agora giram suas longas saias brancas ao redor do moço ao som dos tambores. Num espasmo o corpo inerte se move. As senhoras pararam de rodar. As senhoras pensaram que este corpo repousado no chão não estava pronto para avançar mais um estágio. A falta de um rito de preparação talvez fosse o problema. Dona Chica, que encontrou o corpo no beco escuro, e que ao vê-lo percebeu que a disposição do rapaz a fazer a passagem era maior, não achou que fosse necessário fazer um rito de preparação.
Dona Chica, como dito anteriormente, era uma senhora misteriosa que andava pelas ruas à noite a procura de quem estivesse disposto a fazer a passagem. Ela encontrou o rapaz deitado no chão com a respiração por um fio e com os olhos brilhando a ponto de fazer reluzir qualquer coisa a sua volta. Era de fato um chamado a Dona Chica, um verdadeiro chamado. Dona Chico o pegou pelos braços e o levou até o local onde costumava fazer o seu ritual. E sem hesitar por um segundo sequer, iniciou o processo de passagem desse rapaz.
Um espasmo. Talvez fosse necessário uma preparação, pensou Dona Chica jogando um líquido de cheio sobre o corpo do rapaz com um galho de folhas bem verdes, a fim de fazê-lo acalmar-se. As outras senhoras pararam e puseram-se a olhar Dona Chica, que mesmo surpresa com o acontecido, ainda sim se matinha ciente do que deveria fazer. Ela entoando um canto clamoso e purificando o corpo do rapaz com sua água de cheiro, pensava na vida desse jovem rapaz, que tão cedo decidiu fazer a passagem. Dona Chica não sabia nada sobre o rapaz e acreditava que pouca gente saberia dizer algo.
Esse nosso rapaz por muitas vezes foi visto a caminhar sorrateiramente pelos becos da cidade. Soturno esse rapaz. Sempre sozinho, apesar de nunca estar. Ele era bastante astuto pra saber manter em segredo as suas estripulias noturnas. Esse rapaz que desejou de forma tão prazerosa ser atravessado por um ferro frio, na verdade já havia presenciado outras inúmeras vezes, outros momentos de passagem. A morte já não lhe fazia medo, nem lhe causava surpresas. Ele há muito tempo vinha alimentando o desejo de ter a morte bem próxima de si. Parentes, conhecidos, amigos... todos sem exceção de nenhum, haviam passado. Como? Isso nem eu sei. Apenas posso afirmar que ele presenciou cada passagem de perto. Cada instante. Não pensem mal dele. Ele não seria capaz de fazer nada. Nem tão pouco teve algo haver com a morte de cada pessoa. É que algumas pessoas têm maior vocação para acompanhar de perto às desincorporações ou simplesmente são agourentas. Se pensarmos na segunda opção, esse rapaz seria um agouro de morte, assim como Dona Chica. A morte estava tão próxima dele em todos os momentos, que ele acreditou que deveria trazê-la para dentro de si. Por isso o desejo latente em fazer a passagem.
Dona Chica completou seu canto e o corpo do rapaz se acalmara. Estava novamente quieto. Estendido sobre um círculo de sal grosso. A respiração dele, nesse momento, estava mais forte, mais presente. Não era a hora. O rapaz não completou. Havia estado por um fio, mas este foi suficientemente forte para trazê-lo de volta. Agora de olhos abertos, e não tão brilhantes como quando chegou, ele se levantou olhou a sua volta, e sem surpresa ou fazer qualquer pergunta saiu desse espaço sagrado. Dona Chica e as outras senhoras, compreendendo a precocidade do ritual, também não disseram nada. Apenas observaram esse rapaz retirar-se dali. Ele caminhou por entre as ruas iluminadas pelo nascer do sol em direção a sua casa.
Na noite seguinte, este mesmo rapaz que teve a morte a pouca distância de seu corpo, estava no mesmo bar como de costume. Mas desta vez ele não estava com olhares à procura de outros. E nem estava querendo que o garçom cessasse seu constante informativo. Desta vez este nosso rapaz estava próximo ao balcão, com um copo de cerveja nas mãos, pedindo a atenção de todos os outros homens que se encontravam no bar. Ele queria dizer algo e para isso precisava da atenção de todos. Há muito contragosto dos demais freqüentadores deste bar, que além de suportar os dizeres do garçom, agora teriam que aturar um discurso qualquer, o nosso rapaz iniciou os dizeres.
– Simplesmente pontual - disse o rapaz - Não tenho mais nada a fazer a não ser, ser pontual. Se é que conseguirei. De todos os senhores aqui presente, que pouco se importam com qualquer outro senhor, ou que mal conhece o outro, e que frequentemente cruzam olhares entre si, despretensiosos, mas sempre incisivos, posso afirmar com prazer, que me encontro aqui, não por desejar permanecer nesse lugar, que por muitas vezes me auxiliou e afirmou o desejo de ter em mim uma lânima na barriga, mas para ter o prazer de apontar todos os homens que assim como eu se esgueiram por becos escuros. Para fazer o quê? Eu não preciso dizer. Está aí. Os olhares perdidos que entre um gole ou outro, discretamente convidam rapazes, que como eu, vem para cá em busca de perder-se entre respirações ofegantes e olhares fulminantes. Desejo! Todos estão ardendo em desejos. Se for para ser pontual, que seja assim. Completem seu rito de passagem. Ardam em desejo! Todos! Tirando um ou outro covarde que ainda se esconde por debaixo das luzes. E é isso que tenho para dizer aos senhores corajosos.
Ninguém no bar sabia o porquê daquele discurso, ou por que ouviram de forma tão atenta, cada palavra que o rapaz pronunciou. Acredito que ele nunca falou tanto como neste momento e que talvez nunca fale mais de maneira tão intensa. Ele rompeu com o cordão, assim acredito. Então nosso rapaz saiu pela porta do bar, após ter bebido de uma só vez a cerveja que estava em seu copo deixando-o em silêncio, a não ser pelo chiado quase mudo do rádio do garçom.
[renato ribeiro]

Obs.: Gosto muito deste texto.


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