segunda-feira, dezembro 08, 2008

[encontro com Mrs. Dalloway]

2. Flores

“Eu mesmo vou comprar flores”. Primeira frase que permeou minha cabeça, logo após a incisão da luz do sol pela fresta da janela semi-cerrada; e que permaneceu por toda manhã. Gélida como estava a alvorada e eu sentado na poltrona da varanda, a observar os seletos transeuntes que se arriscavam em passeios matinais, enquanto conservava o calor do meu corpo envolto numa manta, pensava sensatamente em fazer valer este pensamento solto que de súbito me despertou. Talvez fosse realmente sensato organizar uma pequena reunião. Preparar-se para tornar-se anfitrião e lançar-se sob olhares críticos, prontos para desaprovar-me no mais ínfimo descuido. Um risco e acima de tudo uma correção ao insistente erro de não fazer-se notar. Homens da minha idade não podem se privar de pequenos contatos com outros senhores e também senhoras. Morando só, já a alguns anos, sem ter ao lado por tempo suficientemente considerável, alguém a quem pudesse chamar de companheira, para não findar o tempo afundado em poltronas de coura em varandas frias, poderia claramente pensar em pequenos encontros como sendo o proponente, fazendo valer a idade que possuo e a maturidade esperada por ela. “Eu mesmo vou encomendar as flores”, disse firmemente.
À tarde, sentado à mesa do restaurante do centro da cidade, logo após o almoço; o que se configura como uma desvantagem de [ser-se] se viver só, os almoços passam a ser solitários em sua maioria, salvo algumas ocasiões esporádicas em que, sejam por negócios ou por amizades antigas, alguém nos faz pequenas companhias; após o almoço dirigi-me até a floricultura, também próxima ao centro. Queria flores frescas e de boa qualidade, dignas de uma recepção bem sucedida. Flores de como quando, no século passado, um indivíduo era apresentado à sociedade. Um pensamento arcaico, mas que conserva em si as mais puras e precisas intenções de oferecer a esta altura dos não-acontecimentos uma festa. Talvez seja uma tentativa de retroceder o tempo. Experimentar novamente. Sucedido o horário de almoço, com toda a cidade num ritmo acelerado, homens andando a largos passos, com o único intuito de não perder a hora, e meu pensamento absolutamente lento, como uma pétala repousada sobre um lago calmo. Flores. Não havia necessidade de se ter presa, era apenas uma encomenda. Talvez orquídeas ou azaléias ou um arranjo misto pra o centro da mesa.
Ao adentrar pela porta da floricultura observando os inúmeros arranjos dispostos sobre bancadas para pura apreciação e encanto, num lancinante festejo de cores e aromas, penso como a leviandade pode ser amarga em seu fundamento mais simples.
“Possa auxiliar o senhor no que deseja?”, perguntou a funcionária com um sorriso tão ensaiado quanto a minha suposta reação a um encontro inesperado.
“Gostaria de encomendar flores para daqui a dois dias?”, respondi pontualmente.
“Flores de que qualidade?”
“As melhores para uma recepção simples. Penso em tulipas de diversas cores.” Não eram mais orquídeas, nem azaléias. “Tulipas” - e após refletir um pouco - “E uma arranjo de açucenas para a mesa”.
“Tulipas e um arranjo de mesa feito com açucenas para daqui a dois dias. O senhor deseja que seja entregue em sua casa?”
“Eu mesmo venho buscá-las”. Respondi com um prazer para além do comum, como se fosse a própria Mrs. Dalloway.
(renato ribeiro)

2 comentários:

Walmir disse...

pois aih se ficam mist'erios de recepcao.
Belo texto, mano blogueiro.
Walmir
http://walmir.carvalho.zip.net

Walmir disse...

errata: pois aih se fincam...